Por Geledés Instituto da Mulher
Negra
O debate público não comporta o
pensamento religioso, pois questões de convicção pessoal não podem servir como
baliza para decisões que envolvem toda uma sociedade — que inclui também ateus,
agnósticos e pessoas das mais diversas religiões
O Brasil é um Estado laico. Assim como a maioria
dos países do mundo, não tem uma religião oficial e garante constitucionalmente
a liberdade de credo para todos os seus cidadãos. Entretanto, desde 1891 —
quando o catolicismo deixou de ser a religião oficial do país — as instituições
religiosas participam do debate público, em certos casos fundamentando inúmeras
posições com base na fé e na doutrina. Com a bancada evangélica nos holofotes,
o tema voltou a ganhar relevância no espaço público.
Na opinião da professora de Direito Constitucional
da UFPR Vera Karam de Chueiri (na foto abaixo), o debate público não comporta o
pensamento religioso, pois questões de convicção pessoal não podem servir como
baliza para decisões que envolvem toda uma sociedade — que inclui também ateus,
agnósticos e pessoas das mais diversas religiões. “O argumento religioso não
pode entrar no debate público. As razões sempre devem ser de ordem pública, e
não individual”, resume.
Já para o doutor em Direito pela Universidade
Mackenzie Ives Gandra Martins, a laicidade do Estado não significa a ausência
da religião no espaço público. “O Estado laico não é um estado ateu. O Estado
laico é apenas um Estado em que as decisões políticas não dependem de qualquer
igreja, mas onde quem tem religião tem todo o direito de exercer sua
cidadania”, afirma.
Gandra defende que, para quem tem uma religião, é
impossível dissociar convicções religiosas de convicções não religiosas.
Portanto, o argumento calcado na fé teria tanta
legitimidade quanto um argumento baseado em uma ideologia ou visão de mundo
leiga. “Os que acreditam em Deus defendem seus pontos de vista, certamente
influenciados por seus valores, e os que não acreditam são influenciados por
suas convicções pessoais. O debate não pode impedir que aqueles que tenham
religião opinem sobre os interesses da cidadania”, afirma.
A
discussão sobre o Estado laico ganhou força nos últimos anos, uma vez que
diversos temas na agenda pública brasileira têm colocado em lados opostos
igrejas – especialmente as evangélicas – e segmentos sociais leigos. Um exemplo
recente é a PEC que torna instituições religiosas aptas para contestar a
constitucionalidade de leis no Supremo Tribunal Federal. A eleição do deputado
e pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão de direitos
Humanos da Câmara é outro fato que levantou a questão. A legislação referente à
homossexualidade e ao aborto também são pontos de crise entre os segmentos.
Seguem
alguns exemplos, atuais e antigos, dessa relação, às vezes conturbada, entre
igrejas e o Estado laico:
Direitos LGBT
A
questão LGBT é, atualmente, um dos principais pontos de atrito entre os que
defendem a laicidade do Estado e a religião – as polêmicas envolvendo o
deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) são apenas a ponta do iceberg. A
união entre pessoas do mesmo sexo, em âmbito civil, e a possibilidade de esses
casais adotarem crianças, são criticadas de forma veemente por instituições
religiosas, com o argumento de que esse seria um risco para a instituição
familiar – esse debate ocorre também em democracias mais antigas e
tradicionais, como a França. O Projeto de Lei 122, que torna a homofobia um
crime de ódio (assim como já é para o racismo e a xenofobia), também recebe a
oposição de parlamentares evangélicos. Para eles, nesse caso, o Estado passa a
interferir na liberdade de culto.
Na
última semana, um projeto que permite a “cura” de homossexuais, apresentado por
um deputado evangélico, foi colocado na pauta da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara. A Organização Mundial da Saúde (OMS) não considera a
homossexualidade uma doença desde 1993. É um outro exemplo da moral religiosa
interferindo em uma questão pública.
Símbolos religiosos
Apesar
de o Estado ser laico, é comum ver crucifixos e outros símbolos religiosos em
vários órgãos públicos — e, apesar de muitas vezes esses símbolos passarem
despercebidos, eles não deixam de causar polêmica. No ano passado, o Ministério
Público Federal pediu a retirada da frase “Deus seja louvado” de novas cédulas
de real, alegando que ela feria a separação entre igreja e Estado. O pedido
gerou reações exaltadas de ambos os lados. A ironia é que a própria
Constituição brasileira evoca a proteção de Deus, em seu preâmbulo. Na França,
a polêmica foi ainda maior — especialmente com os muçulmanos. Em 2004, uma lei
proibiu o uso de símbolos religiosos em escolas, mesmo quando usados pelos
próprios alunos.
Divórcio
Essa
é uma polêmica já superada, mas que, por décadas, acirrou os ânimos dos
brasileiros. Pela ótica laica, a institucionalização do divórcio era apenas a
confirmação legal de algo que já existia na sociedade civil — casais já se
separavam e encontravam novos parceiros, independentemente da lei, assim como
há muito tempo casais gays vivem juntos. Entretanto, esse ato contrariava — e
até hoje contraria — a doutrina da Igreja Católica, que se opôs radicalmente ao
projeto. As tentativas de se legalizar o divórcio vêm do século 19, mas apenas
em 1977 o divórcio foi instituído, por uma margem estreita de votos. Hoje, é
visto com naturalidade pela maioria da população brasileira.
PEC das Igrejas
A
PEC 99/10, de autoria do deputado evangélico João Campos (PSDB-GO), inclui
entidades religiosas de âmbito nacional entre os entes aptos a contestar a
constitucionalidade de leis no STF. Hoje, as organizações de classes e
federações sindicais já podem fazer isso assim — como representantes dos três
poderes, em nível estadual e federal. Para muitos, isso significa uma
interferência direta da religião na vida pública, incompatível com a existência
do Estado laico. Já outros veem a PEC como uma ampliação da cidadania,
permitindo mais entidades representativas na sociedade de participar da
democracia. De qualquer forma, essa interferência já ocorria de forma indireta.
Por exemplo: quando era procurador-geral da República, Cláudio Fonteles,
católico, questionou a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco
embrionárias após pedido da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Aborto
O
debate sobre a descriminalização do aborto é encarado com lógicas diferentes
entre seus defensores e críticos. Pela lógica da maioria das igrejas, trata-se
de uma questão metafísica: a partir de qual momento começa a vida? Pela
doutrina cristã, a vida começa a partir da fecundação – logo, o aborto pode ser
considerado o equivalente a um assassinato. A ciência não estabelece um ponto
exato, mas é comum considerar a formação do tecido nervoso como um ponto
inicial. Independentemente disso, quem defende a descriminalização argumenta
que a proibição não resulta em uma redução do caso de abortos e causa a morte
de milhares de mulheres em todo o país.
O Direito Revisto – Mai/13
Publicado
originalmente em: Geledés Instituto da Mulher Negra
Imagem: Google
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