Por
Prof. Ney Moura Teles
A definição do crime continuado é extraída do art. 71 do Código
Penal: “Quando o
agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da
mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras
semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro,
aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se
diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”
O chamado
crime continuado é outra criação jurídica que, tanto quanto o concurso formal,
resulta numa punição menos severa do agente que comete mais de um crime. No
concurso formal perfeito, praticando o agente mais de um crime é, em regra,
punido com a pena de um deles, a mais grave, se distintas, aumentada, todavia,
de 1/6 até metade, em vez de, como no concurso material, receber as penas de
ambos, simplesmente somadas.
No crime
continuado, em vez de cumular as penas dos vários crimes, manda a lei seja
aplicada a pena de um dos crimes, a mais grave, se diversas, aumentada,
todavia, de 1/6 a 2/3. Vê-se que a punição é mais severa que a do concurso
formal perfeito.
Para
existir crime continuado, será necessário que: (a) o agente realize mais de uma
conduta; (b) seja praticado mais de um crime; (c) os crimes sejam da mesma
espécie; (d) exista um nexo de continuidade entre os crimes, que se materialize
por meio de certa homogeneidade ou uniformidade de suas circunstâncias de
natureza objetiva.
Explicando
de outra forma: por meio de mais de um comportamento, mais de uma ação ou
omissão, o agente realiza mais de um crime. Esses crimes devem ser da mesma
espécie, existindo entre eles um nexo de continuação. Importa responder, então,
a essas duas questões: o que são crimes de mesma espécie? O que é nexo de
continuação?
Crimes da
mesma espécie
Para
DAMÁSIO E. DE JESUS são crimes da mesma espécie os “previstos no mesmo tipo
penal, i. e., aqueles que possuem os mesmos elementos descritivos,
abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas ou
consumadas”. (DIREITO PENAL, vol. I, pág. 526, Saraiva)
Por essa
forma de pensar, somente haveria crime continuado entre um homicídio simples e
um privilegiado, ou uma tentativa de homicídio, ou um homicídio qualificado.
Igualmente haveria entre um furto simples e um furto qualificado. E não seria
possível falar em crime continuado na hipótese de um estupro e um atentado
violento ao pudor. Nem entre um crime de estelionato e um de apropriação
indébita. E tampouco entre uma calúnia e uma difamação.
Deve-se
pensar diferente: são crimes da mesma espécie aqueles cujos tipos tiverem o
mesmo objeto jurídico. A idéia de espécie pressupõe a existência de gênero. Não
se pode falar em gênero de furto, do qual seriam espécies o furto simples e o
qualificado, mas em gênero de crimes contra o patrimônio, do qual são espécies
o furto, simples e qualificado, o roubo, próprio e impróprio, a extorsão, o
estelionato, a receptação, dolosa e culposa etc.
Poderá
haver continuidade entre quaisquer crimes contra o patrimônio, ou entre mais de um dos crimes contra a pessoa, ou
entre os vários crimes contra a administração pública, enfim, poderá
haver continuação entre todos os crimes que tiverem
como objeto o mesmo bem jurídico, desde que os demais pressupostos sejam
realizados.
Logo,
será possível continuidade entre corrupção passiva e peculato, ou entre roubo e
estelionato.
ALBERTO
SILVA FRANCO explica: “O gênero contém potencialmente as diferenças. (...)
As espécies expressam-no na realidade. Assim, por exemplo, furto, roubo,
apropriação indébita, estelionato, extorsão, dano etc. são todos espécies
diversificadas que se congregam na proteção do ‘gênero’ patrimônio. E, como
espécies, destacam o gênero que está presente em cada uma delas. As diferenças
entre as espécies guardam, no entanto, gradações, umas maiores, outras menores.
É, portanto, sob o ângulo dessas gradações
que umas espécies se aproximam e outras se distanciam.”
(CÓDIGO PENAL E SUA INTERPRETAÇÃO, 8ª. ed., Ed. RT, pág. 394)
Em
conclusão, são da mesma espécie os crimes que tiverem como objeto o mesmo bem
jurídico e que guardem, entre si, semelhança em seus elementos objetivos e
subjetivos.
Nexo de
continuação
Para
haver crime continuado, é preciso que, além de se tratar de crimes de mesma
espécie, exista entre eles nexo de continuação. Essa continuidade deverá ser
verificada com base na análise das seguintes circunstâncias: tempo, lugar,
maneira de execução e outras condições assemelhadas, que deverão guardar, entre
si, certa homogeneidade.
Por
condições de tempo semelhantes é de se entender que os crimes em
continuidade devem situar-se proximamente no tempo. Os crimes que serão
considerados continuação do primeiro devem ter ocorrido dentro de algum tempo
depois. Como mensurar essa quantidade de tempo, com base em quais critérios?
Esse é problema de solução não tão simples. Não se pode realizar análise
meramente aritmética, mas entre os crimes deve mediar tempo que indique a
persistência de certo liame psíquico que sugira uma seqüência entre os dois
fatos.
Não se deve estabelecer critério rígido, fixando prazo máximo entre um e
outro crime
– por exemplo, um mês, dois meses ou três meses –, mas analisar essa
circunstância em conjunto com as demais, de lugar e, principalmente, de forma
de execução, para se verificar a caracterização da continuidade.
Por
exemplo, haverá nexo entre três homicídios praticados pelo mesmo agente, contra
três padres, nas três últimas sextas-feiras santas, apesar de entre cada um
mediar aproximadamente um ano, e entre o primeiro e o último ter decorrido
cerca de dois anos.
Igualmente,
deverá o crime que se quer continuação do primeiro ter acontecido em lugar
próximo dele. Também aqui não se podem definir critérios rígidos como: no mesmo
bairro, na mesma cidade, ou apenas em cidades limítrofes.
Outra vez
se deve analisar essa circunstância em conjunto com as demais, para se
encontrar o nexo seqüencial indispensável ao reconhecimento da continuação.
Poderá haver continuação entre dois crimes
praticados no mesmo bairro, na mesma cidade, em cidades vizinhas, mas
não haverá, necessariamente, continuação tão-somente pelo fato de terem sido
praticados na mesma região, ou na mesma rua.
A maneira
de execução deve ser aproximada ou, em outras palavras, assemelhada. Entre
os dois crimes, deve ser possível verificar a semelhança do modus operandi,
seja no que diz respeito aos instrumentos utilizados, seja na atividade
solitária ou conjunta do condenado, seja no que tange ao horário em que atua,
ou no modo de atacar as vítimas.
Por
exemplo, ainda que praticados em condições semelhantes de tempo e espaço, não
haverá continuação se o primeiro foi um furto noturno em residência, com
arrombamento, praticado exclusivamente pelo agente, ao passo que o segundo foi
um furto durante o dia, em concurso com dois outros autores, em estabelecimento
comercial, e com destreza. A maneira de execução foi diferente no segundo, pelo
que não será reconhecida a continuação.
A lei é
clara: só haverá continuidade delitiva se as circunstâncias objetivas dos
crimes que se desejar continuados forem harmônicas entre si. É necessária certa
homogeneidade das circunstâncias de todos os crimes.
Parte da
doutrina exige que, além das semelhanças entre as circunstâncias objetivas,
haja, também, certa semelhança no que tange às razões de natureza subjetiva do
agente. Apesar de ter o Código Penal adotado a teoria objetiva, que não exige
um único dolo, uma única resolução criminosa, ou unidade de desígnio para todos
os crimes, defendem respeitáveis doutrinadores, como DAMÁSIO E. DE JESUS, que,
para o reconhecimento da continuidade, o agente deve ter agido num único
contexto, ou em situações que se repitam ao longo de uma única relação
prolongada no tempo. Para essa corrente, só haverá continuidade delitiva se os
crimes resultarem de um único desígnio do agente.
A
jurisprudência uniforme do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se
exigir, para o reconhecimento do crime continuado, a unidade de desígnios (REsp
742402; HC 46903; HC 60695; REsp 820633 etc.), mas o Supremo Tribunal
Federal, em acórdão relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, tratou assim a
matéria: “Crime continuado: conceito puramente objetivo da lei brasileira.
Relevância de dados subjetivos restrita à fixação da pena unificada. O direito
brasileiro, no art. 71 da nova Parte Geral, de 1984, do Código Penal, persistiu
na concepção puramente objetiva do crime continuado: a alusão, na definição
legal do instituto, a outras circunstâncias semelhantes àquelas que enumerou –
‘tempo, lugar, e modo de execução’ – só compreende as que, como as últimas,
sejam de caráter objetivo, não abrangendo dados subjetivos dos fatos. Viola o
art. 71 o acórdão que, embora reconhecendo a concorrência dos elementos da caracterização objetiva do crime continuado, que
nele se adotou, nega, porém, a unificação das penas, à base de
circunstâncias subjetivas, quais os antecedentes do acusado ou a ausência da
unidade de desígnio.” (HC
68661).
Decisões mais recentes do STF, entretanto, exigem
também o elemento subjetivo (RHC 107.661; HC 95.953; RHC 85.577)
Correta,
ao meu ver, é a posição daquele acórdão da Suprema Corte brasileira, relatado
por SEPÚLVEDA PERTENCE, pois, efetivamente, a norma do art. 71 não pode ser
interpretada extensivamente, porque não é essa a vontade da lei que, para
exigir elementos subjetivos, deveria, expressamente, mencioná-los. Já se
aprendeu que uma interpretação teleológica extensiva deve necessariamente
resultar harmônica e coerente com o sistema, e que, se dúvidas restarem, jamais
se interpretará em desfavor daquele que estiver sendo perseguido: o acusado.
Aplicabilidade
do crime continuado a bens personalíssimos
Duas correntes doutrinárias divergiam quanto à aplicabilidade do instituto do crime continuado quando se tratasse de crimes que
se voltam contra bens personalíssimos.
Para a primeira, não seria possível a continuidade quando os crimes,
voltando-se contra bens jurídicos personalíssimos, são praticados contra
vítimas diferentes. Antes da reforma de 1984, esse pensamento era majoritário e
contava com a maioria da jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal.
Os argumentos eram ponderáveis: tratando-se de ataques a bens personalíssimos,
não se poderia considerar o ataque à segunda pessoa continuação da agressão à
primeira; ao dirigir a conduta contra pessoa distinta, alterada estava a
resolução criminosa, pelo que impossível considerar a continuação.
Para a outra corrente, era possível a continuidade entre crimes que atingissem
bens pessoais, mesmo que de vítimas diferentes, porque nenhuma restrição legal
havia a esse respeito, nem se exigia unidade de desígnio para o reconhecimento
do crime continuado.
Com a reforma do Código Penal, de 1984, a discussão ficou encerrada, uma
vez que o novo texto legal admite a continuidade delitiva quaisquer que sejam
os crimes, inclusive contra vítimas diferentes.
A norma
do parágrafo único do art. 71 veio solucionar a antiga polêmica. Está assim
redigida: “Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com
violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o
juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e
a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a
pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o
triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste
Código.”
Se a
norma do parágrafo único do art. 71 permite a continuidade para crimes dolosos
contra vítimas diferentes e cometidos com violência ou grave ameaça, deve-se
entender que a norma do caput do art. 71 aplica-se a todos os crimes,
dolosos ou culposos, praticados contra a mesma vítima, ainda que com violência
ou grave ameaça à pessoa, bastando que sejam da mesma espécie e entre eles haja
nexo de continuação.
A partir
de então, tem-se o seguinte: aplica-se a continuidade delitiva a quaisquer
crimes, desde que – da mesma espécie – haja nexo de continuação entre eles,
verificável pelas circunstâncias objetivas, de tempo, lugar, modo de execução
etc. Não importa sejam os bens atingidos personalíssimos, aplicando-se ainda
que cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, e mesmo quando contra
vítimas diferentes.
As penas
serão aplicadas, da seguinte forma:
a) se o
crime é cometido contra a mesma vítima, com ou sem violência ou grave ameaça,
aplicar-se-á apenas uma pena, se idênticas, ou a mais grave, se diversas,
aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços;
b) se os
crimes são dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave
ameaça, aplicar-se-á apenas uma das penas, se idênticas, ou a mais grave, se
diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto até o triplo, com atenção a
culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos e
circunstâncias do crime.
A
propósito da aplicabilidade da continuidade delitiva quando se tratar de crimes
de homicídio, o Superior Tribunal de
Justiça, em acórdão relatado pelo eminente Ministro Assis Toledo, assim
enfrentou a matéria: “EMENTA: Crime continuado. Duplo homicídio contra
vítimas diferentes. Possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva,
diante da norma expressa do parágrafo único do art. 71 do Código Penal,
acrescentado pela reforma penal de 1984 (Lei nº 7.209/84). Matéria de
competência do Juiz, não dos jurados, razão pela qual não deve ser objeto de
quesitação. Pena. A aplicação do critério do parágrafo único do art. 71 não
pode elevar a pena além do máximo do concurso material e, por razão lógica, não
deve igualmente rebaixá-la aquém do que seria cabível pelo concurso formal, na
hipótese de desígnios autônomos, dada a identidade de situações. Recurso
especial de defesa conhecido e provido para, reconhecida a continuidade
delitiva, reduzir-se a pena aplicada” (RSTJ 78/345).
Em
qualquer das hipóteses, a pena não pode ser superior à que seria cabível caso
fosse aplicada a regra do concurso material, nem superior a 30 anos.
O Direito Revisto – Abr/13
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