segunda-feira, 1 de abril de 2013

Crime Continuado



Por Prof. Ney Moura Teles
 A definição do crime continuado é extraída do art. 71 do Código Penal: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”
O chamado crime continuado é outra criação jurídica que, tanto quanto o concurso formal, resulta numa punição menos severa do agente que comete mais de um crime. No concurso formal perfeito, praticando o agente mais de um crime é, em regra, punido com a pena de um deles, a mais grave, se distintas, aumentada, todavia, de 1/6 até metade, em vez de, como no concurso material, receber as penas de ambos, simplesmente somadas.
No crime continuado, em vez de cumular as penas dos vários crimes, manda a lei seja aplicada a pena de um dos crimes, a mais grave, se diversas, aumentada, todavia, de 1/6 a 2/3. Vê-se que a punição é mais severa que a do concurso formal perfeito.
Para existir crime continuado, será necessário que: (a) o agente realize mais de uma conduta; (b) seja praticado mais de um crime; (c) os crimes sejam da mesma espécie; (d) exista um nexo de continuidade entre os crimes, que se materialize por meio de certa homogeneidade ou uniformidade de suas circunstâncias de natureza objetiva.
Explicando de outra forma: por meio de mais de um comportamento, mais de uma ação ou omissão, o agente realiza mais de um crime. Esses crimes devem ser da mesma espécie, existindo entre eles um nexo de continuação. Importa responder, então, a essas duas questões: o que são crimes de mesma espécie? O que é nexo de continuação?
Crimes da mesma espécie
Para DAMÁSIO E. DE JESUS são crimes da mesma espécie os “previstos no mesmo tipo penal, i. e., aqueles que possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas ou consumadas”. (DIREITO PENAL, vol. I, pág. 526, Saraiva)
Por essa forma de pensar, somente haveria crime continuado entre um homicídio simples e um privilegiado, ou uma tentativa de homicídio, ou um homicídio qualificado. Igualmente haveria entre um furto simples e um furto qualificado. E não seria possível falar em crime continuado na hipótese de um estupro e um atentado violento ao pudor. Nem entre um crime de estelionato e um de apropriação indébita. E tampouco entre uma calúnia e uma difamação.
Deve-se pensar diferente: são crimes da mesma espécie aqueles cujos tipos tiverem o mesmo objeto jurídico. A idéia de espécie pressupõe a existência de gênero. Não se pode falar em gênero de furto, do qual seriam espécies o furto simples e o qualificado, mas em gênero de crimes contra o patrimônio, do qual são espécies o furto, simples e qualificado, o roubo, próprio e impróprio, a extorsão, o estelionato, a receptação, dolosa e culposa etc.
Poderá haver continuidade entre quaisquer crimes contra o patrimônio, ou entre mais de um dos crimes contra a pessoa, ou entre os vários crimes contra a administração pública, enfim, poderá haver continuação entre todos os crimes que tiverem como objeto o mesmo bem jurídico, desde que os demais pressupostos sejam realizados.
Logo, será possível continuidade entre corrupção passiva e peculato, ou entre roubo e estelionato.
ALBERTO SILVA FRANCO explica: “O gênero contém potencialmente as diferenças. (...) As espécies expressam-no na realidade. Assim, por exemplo, furto, roubo, apropriação indébita, estelionato, extorsão, dano etc. são todos espécies diversificadas que se congregam na proteção do ‘gênero’ patrimônio. E, como espécies, destacam o gênero que está presente em cada uma delas. As diferenças entre as espécies guardam, no entanto, gradações, umas maiores, outras menores. É, portanto, sob o ângulo dessas gradações que umas espécies se aproximam e outras se distanciam. (CÓDIGO PENAL E SUA INTERPRETAÇÃO, 8ª. ed., Ed. RT, pág. 394)
Em conclusão, são da mesma espécie os crimes que tiverem como objeto o mesmo bem jurídico e que guardem, entre si, semelhança em seus elementos objetivos e subjetivos.
Nexo de continuação
Para haver crime continuado, é preciso que, além de se tratar de crimes de mesma espécie, exista entre eles nexo de continuação. Essa continuidade deverá ser verificada com base na análise das seguintes circunstâncias: tempo, lugar, maneira de execução e outras condições assemelhadas, que deverão guardar, entre si, certa homogeneidade.
Por condições de tempo semelhantes é de se entender que os crimes em continuidade devem situar-se proximamente no tempo. Os crimes que serão considerados continuação do primeiro devem ter ocorrido dentro de algum tempo depois. Como mensurar essa quantidade de tempo, com base em quais critérios? Esse é problema de solução não tão simples. Não se pode realizar análise meramente aritmética, mas entre os crimes deve mediar tempo que indique a persistência de certo liame psíquico que sugira uma seqüência entre os dois fatos.
Não se deve estabelecer critério rígido, fixando prazo máximo entre um e outro crime – por exemplo, um mês, dois meses ou três meses –, mas analisar essa circunstância em conjunto com as demais, de lugar e, principalmente, de forma de execução, para se verificar a caracterização da continuidade.
Por exemplo, haverá nexo entre três homicídios praticados pelo mesmo agente, contra três padres, nas três últimas sextas-feiras santas, apesar de entre cada um mediar aproximadamente um ano, e entre o primeiro e o último ter decorrido cerca de dois anos.
Igualmente, deverá o crime que se quer continuação do primeiro ter acontecido em lugar próximo dele. Também aqui não se podem definir critérios rígidos como: no mesmo bairro, na mesma cidade, ou apenas em cidades limítrofes.
Outra vez se deve analisar essa circunstância em conjunto com as demais, para se encontrar o nexo seqüencial indispensável ao reconhecimento da continuação. Poderá haver continuação entre dois crimes praticados no mesmo bairro, na mesma cidade, em cidades vizinhas, mas não haverá, necessariamente, continuação tão-somente pelo fato de terem sido praticados na mesma região, ou na mesma rua.
A maneira de execução deve ser aproximada ou, em outras palavras, assemelhada. Entre os dois crimes, deve ser possível verificar a semelhança do modus operandi, seja no que diz respeito aos instrumentos utilizados, seja na atividade solitária ou conjunta do condenado, seja no que tange ao horário em que atua, ou no modo de atacar as vítimas.
Por exemplo, ainda que praticados em condições semelhantes de tempo e espaço, não haverá continuação se o primeiro foi um furto noturno em residência, com arrombamento, praticado exclusivamente pelo agente, ao passo que o segundo foi um furto durante o dia, em concurso com dois outros autores, em estabelecimento comercial, e com destreza. A maneira de execução foi diferente no segundo, pelo que não será reconhecida a continuação.
A lei é clara: só haverá continuidade delitiva se as circunstâncias objetivas dos crimes que se desejar continuados forem harmônicas entre si. É necessária certa homogeneidade das circunstâncias de todos os crimes.
Parte da doutrina exige que, além das semelhanças entre as circunstâncias objetivas, haja, também, certa semelhança no que tange às razões de natureza subjetiva do agente. Apesar de ter o Código Penal adotado a teoria objetiva, que não exige um único dolo, uma única resolução criminosa, ou unidade de desígnio para todos os crimes, defendem respeitáveis doutrinadores, como DAMÁSIO E. DE JESUS, que, para o reconhecimento da continuidade, o agente deve ter agido num único contexto, ou em situações que se repitam ao longo de uma única relação prolongada no tempo. Para essa corrente, só haverá continuidade delitiva se os crimes resultarem de um único desígnio do agente.
A jurisprudência uniforme do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se exigir, para o reconhecimento do crime continuado, a unidade de desígnios (REsp 742402; HC 46903; HC 60695; REsp 820633  etc.), mas o Supremo Tribunal Federal, em acórdão relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, tratou assim a matéria: “Crime continuado: conceito puramente objetivo da lei brasileira. Relevância de dados subjetivos restrita à fixação da pena unificada. O direito brasileiro, no art. 71 da nova Parte Geral, de 1984, do Código Penal, persistiu na concepção puramente objetiva do crime continuado: a alusão, na definição legal do instituto, a outras circunstâncias semelhantes àquelas que enumerou – ‘tempo, lugar, e modo de execução’ – só compreende as que, como as últimas, sejam de caráter objetivo, não abrangendo dados subjetivos dos fatos. Viola o art. 71 o acórdão que, embora reconhecendo a concorrência dos elementos da caracterização objetiva do crime continuado, que nele se adotou, nega, porém, a unificação das penas, à base de circunstâncias subjetivas, quais os antecedentes do acusado ou a ausência da unidade de desígnio. (HC 68661).
Decisões mais recentes do STF, entretanto, exigem também o elemento subjetivo (RHC 107.661; HC 95.953; RHC 85.577)
Correta, ao meu ver, é a posição daquele acórdão da Suprema Corte brasileira, relatado por SEPÚLVEDA PERTENCE, pois, efetivamente, a norma do art. 71 não pode ser interpretada extensivamente, porque não é essa a vontade da lei que, para exigir elementos subjetivos, deveria, expressamente, mencioná-los. Já se aprendeu que uma interpretação teleológica extensiva deve necessariamente resultar harmônica e coerente com o sistema, e que, se dúvidas restarem, jamais se interpretará em desfavor daquele que estiver sendo perseguido: o acusado.
Aplicabilidade do crime continuado a bens personalíssimos
        Duas correntes doutrinárias divergiam quanto à aplicabilidade do instituto do crime continuado quando se tratasse de crimes que se voltam contra bens personalíssimos.
        Para a primeira, não seria possível a continuidade quando os crimes, voltando-se contra bens jurídicos personalíssimos, são praticados contra vítimas diferentes. Antes da reforma de 1984, esse pensamento era majoritário e contava com a maioria da jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal. Os argumentos eram ponderáveis: tratando-se de ataques a bens personalíssimos, não se poderia considerar o ataque à segunda pessoa continuação da agressão à primeira; ao dirigir a conduta contra pessoa distinta, alterada estava a resolução criminosa, pelo que impossível considerar a continuação.
        Para a outra corrente, era possível a continuidade entre crimes que atingissem bens pessoais, mesmo que de vítimas diferentes, porque nenhuma restrição legal havia a esse respeito, nem se exigia unidade de desígnio para o reconhecimento do crime continuado.
          Com a reforma do Código Penal, de 1984, a discussão ficou encerrada, uma vez que o novo texto legal admite a continuidade delitiva quaisquer que sejam os crimes, inclusive contra vítimas diferentes.
A norma do parágrafo único do art. 71 veio solucionar a antiga polêmica. Está assim redigida: “Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.”
Se a norma do parágrafo único do art. 71 permite a continuidade para crimes dolosos contra vítimas diferentes e cometidos com violência ou grave ameaça, deve-se entender que a norma do caput do art. 71 aplica-se a todos os crimes, dolosos ou culposos, praticados contra a mesma vítima, ainda que com violência ou grave ameaça à pessoa, bastando que sejam da mesma espécie e entre eles haja nexo de continuação.
A partir de então, tem-se o seguinte: aplica-se a continuidade delitiva a quaisquer crimes, desde que – da mesma espécie – haja nexo de continuação entre eles, verificável pelas circunstâncias objetivas, de tempo, lugar, modo de execução etc. Não importa sejam os bens atingidos personalíssimos, aplicando-se ainda que cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, e mesmo quando contra vítimas diferentes.
As penas serão aplicadas, da seguinte forma:
a) se o crime é cometido contra a mesma vítima, com ou sem violência ou grave ameaça, aplicar-se-á apenas uma pena, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços;
b) se os crimes são dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça, aplicar-se-á apenas uma das penas, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto até o triplo, com atenção a culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos e circunstâncias do crime.
A propósito da aplicabilidade da continuidade delitiva quando se tratar de crimes de homicídio, o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo eminente Ministro Assis Toledo, assim enfrentou a matéria: “EMENTA: Crime continuado. Duplo homicídio contra vítimas diferentes. Possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva, diante da norma expressa do parágrafo único do art. 71 do Código Penal, acrescentado pela reforma penal de 1984 (Lei nº 7.209/84). Matéria de competência do Juiz, não dos jurados, razão pela qual não deve ser objeto de quesitação. Pena. A aplicação do critério do parágrafo único do art. 71 não pode elevar a pena além do máximo do concurso material e, por razão lógica, não deve igualmente rebaixá-la aquém do que seria cabível pelo concurso formal, na hipótese de desígnios autônomos, dada a identidade de situações. Recurso especial de defesa conhecido e provido para, reconhecida a continuidade delitiva, reduzir-se a pena aplicada” (RSTJ 78/345).
Em qualquer das hipóteses, a pena não pode ser superior à que seria cabível caso fosse aplicada a regra do concurso material, nem superior a 30 anos.

O Direito Revisto – Abr/13

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