Por Flávio Luiz Yarshell
Ninguém tem dúvida de que o processo é
instrumento a serviço do direito material e de que a efetividade
daquele, embora não exclusivamente, depende da atuação da vontade
concreta do direito objetivo. O processo, conquanto tenha um relevante
valor intrínseco, na medida em que é penhor de legalidade e meio de
controle do exercício do poder, é concebido para fazer valer os valores
consagrados no plano substancial. Por isso, é natural que, sem qualquer
risco de retrocesso ao sincretismo, o processo muitas vezes considere as
peculiaridades da relação material controvertida.
Mais do que isso, o estudo do direito processual à
luz das situações concebidas pelo direito material dá àquele primeiro
contornos menos abstratos e teóricos. Como já foi dito com grande
felicidade, o direito material é uma espécie de “banco de prova” para o
direito processual (Dinamarco). O diálogo com os diferentes segmentos do
direito material enriquece o direito processual. O estudioso desse
último tem o dever de identificar e de refletir sobre as situações de
direito material que mais diretamente possam ter relação com institutos
processuais.
Em alguns casos, a proximidade é mais evidente.
Alguns institutos são reivindicados pelo direito material e pelo
processual, a ponto de se cogitar da existência de uma simbiose, a
ensejar a categoria do direito “processual material”. É pensar nos temas
da prova e da responsabilidade patrimonial, que são objeto de
disciplina legal tanto pelo Código Civil, quanto pelo Código de Processo
Civil. É pensar também nas condições da ação (especialmente a
possibilidade jurídica do pedido e legitimidade) que, enfatizando o
caráter instrumental do instituto, afastam-se de seu caráter abstrato e
incondicionado, para ligá-lo ao direito material.
Com esse espírito, aproveita-se este espaço. Não se
trata de buscar exaustivamente tudo o que possa existir de processo no
CC. Também não se trata de estudar os temas que claramente sejam comuns a
uma e outra seara, conforme acima mencionado. Trata-se, como está
expresso no título, de apontar regras contidas na lei civil – de
preferência aquelas que normalmente despertam menor atenção – e que
convém sejam lidas em conjunto com normas ou princípios processuais. Não
há, diga-se, pretensão de promover surpreendentes descobertas, mas
simplesmente de estimular o diálogo já mencionado e, como também dito,
colocar à prova o direito processual.
Começo pela regra inscrita no art. 883 do CC. Segundo o caput
desse dispositivo, não tem direito à repetição do indébito aquele que
“deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei”.
Desde logo, a regra sugere um exemplo – a enriquecer o repertório de
Manuais e de docentes – de impossibilidade jurídica do pedido porque, de
antemão, a lei exclui a possibilidade de se obter a devolução de
valores pagos em tais circunstâncias. A analogia com a dívida de jogo é
evidente e, no direito material, talvez se pudesse mesmo qualificar a
obrigação como natural. Aplicando-se a teoria da asserção, tem-se o
seguinte: se, desde logo, o autor reconhece que a prestação que efetuou
foi em contrapartida de fim ilícito, imoral ou proibido por lei, então é
caso de indeferimento da inicial por impossibilidade jurídica do
pedido. Se, diversamente, o autor simplesmente invoca as situações
descritas pelos artigos 876 e 877 do CC e, ao cabo da instrução,
apura-se que o pagamento foi feito naquelas circunstâncias, então é caso
de o juiz decretar a improcedência da demanda.
Mas, a curiosidade do dispositivo nem está
propriamente aí, e sim no parágrafo único, segundo o qual, “o que se deu
reverterá em favor de estabelecimento local de beneficência, a critério
do juiz”. A situação é curiosa porque, suposto que a obrigação fosse
tipicamente natural, simplesmente não haveria como exigir qualquer forma
de restituição, entendida como subtração do patrimônio daquele que
recebeu (salvo se voluntariamente se dispusesse a devolver). Portanto,
não se trata exatamente de obrigação natural; não ao menos como
tradicionalmente concebida. Não se pode falar em inexistência do direito
de ação quando se admite o julgamento do mérito e uma efetiva
condenação de quem recebeu indevidamente (ainda que em favor de
terceiro).
Sob o ângulo processual, a peculiaridade está em
que a lei sugere a possibilidade de que ao réu seja imposta condenação
que não encontra correspondência em pedido. É que não parece possível –
ou plausível – que o autor venha a juízo para pedir a repetição
diretamente em favor de terceiro, ainda que, para argumentar, em caráter
eventual (isto é, o autor pede para si e, subsidiariamente, para a
instituição beneficente). A regra do art. 6º do CPC impede o pleito e
não haveria como contornar o óbice de que, nesse caso, o autor estaria a
falar em nome próprio, por direito de terceiro, sem autorização legal; a
menos que se entenda que o parágrafo único teria outorgado, ainda que
não explicitamente, legitimação extraordinária ao autor; o que não
parece correto. Tampouco parece possível que o réu, em contestação ou
reconvenção, pleiteasse, ainda que em caráter subsidiário, que eventual
condenação revertesse não em favor do autor, mas de terceiro.
Então, pensando apenas na hipótese realista de o
autor simplesmente pedir condenação em seu próprio favor, imaginar que o
juiz possa condenar o réu a pagar a terceiro – sem embargo da louvável
intenção do Legislador – seria, para além da flagrante ilegitimidade
ativa, afrontar a regra de adstrição inscrita na lei (CPC, artigos 2º,
128, 262, 293 e 460), como ainda a garantia constitucional do
contraditório (CF, art. 5º, LIV) que inspira a disciplina legal: o juiz
julga nos limites do pedido, dentre outros, porque é em torno dele que o
réu se defende.
Os óbices referidos pelo caput do art. 883
do CC sugerem – inclusive pela destinação indicada pelo parágrafo único
– violação que transcende a órbita individual; a menos que se pudesse
determinar, em dado caso, que o objeto da prestação teria concretamente
afetado o patrimônio jurídico de pessoa determinada. Por exemplo,
poder-se-ia imaginar que o pagamento teria sido feito com recursos
indevidamente apropriados de terceira pessoa. Mas, nesse caso, o
prejudicado teria o ônus de ir a juízo e – novamente o processo aparece –
talvez se pudesse até cogitar de intervenção na forma de oposição (CPC,
art. 54). Mas, nesse caso, não incidiria a disposição do parágrafo
único justamente pelo reconhecimento de que o valor pertenceria a
alguém.
Sem pretender dar solução definitiva ao problema, o que parece
correto é que, diante da conclusão de que se trata de pagamento para
obtenção de finalidade ilícita, imoral ou proibida por lei, o juiz, ao
sentenciar (e só aí porque, então, teria confirmado tratar-se da
situação prevista pela lei), deve dar ciência ao Ministério Público,
para que, a seu critério, promova ação civil pública, tendente à
condenação do réu ao pagamento em prol da causa assistencial. Não se
pode falar em direito individual e próprio do estabelecimento local de
beneficência (suposto que fosse um só). Nesse caso, a instituição não
seria mais do que um circunstancial administrador de recursos destinados
à tutela de pessoas indeterminadas, mas não propriamente um legitimado
ativo.
Revendo Direito - Jan/13
Por Flávio Luiz Yarshell
http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/achados-processuais-no-codigo-civil-i/9983
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