Por Flávio Luiz Yarshell
Uma pesquisa singela, com emprego de
ferramenta eletrônica, revela que o Código Civil utiliza a palavra
“juiz” em mais de uma centena de oportunidades. Certamente, o emprego
do termo se refere a situações diversificadas: ora se tem em mente um
ato estatal, ora se trata de delimitar os poderes do magistrado, ora se
quer apenas dizer que tal ou qual efeito jurídico há que ser produzido
no âmbito jurisdicional. Seja como for, a alusão reiterada da lei civil a
uma forma de exercício de poder estatal faz pensar que as regras assim
estabelecidas devem ser interpretadas sempre à luz das garantias
integrantes do devido processo legal e, em particular, do efetivo
contraditório.
A preocupação do Legislador civil com o
contraditório aparece em algumas passagens relevantes. Por exemplo,
quando trata da exclusão de membro de associação, o art. 57 só a admite
diante de justa causa “assim reconhecida em procedimento que assegure
direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto”. Nesse
caso, sem embargo da ressalva final, não parece possível que o estatuto
simplesmente suprima o contraditório. A decisão de exclusão repercute
de forma relevante na esfera do associado e, não obstante o ato esteja
sujeito ao controle jurisdicional (em que limites?), ela configura
exercício de poder, o qual só se legitima pela garantia de participação,
que se traduz no clássico binômio “ciência necessária” e “reação
possível”. Regra análoga está inscrita no art. 1085, ao tratar da
possibilidade de exclusão de sócio minoritário mediante alteração do
contrato social, a ser determinada em reunião ou assembleia
“especialmente convocada para esse fim, ciente o acusado em tempo hábil
para permitir seu comparecimento e o exercício de defesa” (§ único).
Nessas duas hipóteses, não obstante respeitáveis
opiniões em contrário, a possibilidade de a exclusão ser feita de forma
extrajudicial não retira interesse de agir para pedido de exclusão
judicial; inclusive porque isso se afina com o espírito das normas,
quando consagram a garantia do contraditório. Ainda que o efeito
jurídico possa ser produzido fora de juízo, é inegável a utilidade do
provimento, quer sob a ótica do Estado, quer sob a ótica das partes;
especialmente quando se considera que a exclusão extrajudicial
obviamente está sujeita ao posterior controle jurisdicional, de tal
sorte que o pedido de exclusão, quando muito, inverte a forma e o
momento do referido controle, que se torna preventivo. Pensar
diversamente seria reputar que em todas as hipóteses em que a lei civil
autoriza a autotutela – como ocorre nos casos previstos pelos parágrafos
únicos dos artigos 1210, 249 e 251 – o autor seria carecedor de ação; o
que não parece desejável, quando se tem em mente que o escopo magno da
jurisdição é o de pacificar (=eliminar controvérsias) com justiça.
Ainda em outra passagem, o Código Civil está atento
à garantia do contraditório. Ao disciplinar o seguro obrigatório,
determina o art. 788 que o segurador demandado pelo terceiro prejudicado
não poderá alegar exceção do contrato não cumprido pelo segurado, “sem
promover a citação deste para integrar o contraditório”. Aparentemente, a
preocupação maior não está na garantia da defesa, porque o segurado não
poderia ficar vinculado por decisão (menos ainda pelos respectivos
fundamentos) proferida entre outrem, diante dos limites subjetivos da
coisa julgada (CPC, art. 472, aí sim inspirado na garantia do
contraditório). O que se busca é a resolução mais completa do litígio,
evitando-se comandos eventualmente conflitantes a respeito de uma
relação unitária. Aliás, sob a ótica do litisconsórcio, a “integração do
contraditório” não está adequadamente explicada pela lei civil porque a
razão legal que justifica a vinda do segurado à relação processual não
integra a causa de pedir da demanda inicial. E, se o que se quer é
estender a condenação ao segurado, isso não parece possível sem que se
altere o objeto do processo (que, como se sabe, é definido pelo autor).
Mas, para concluir, há hipóteses em que o
Legislador civil não explicitou a garantia do contraditório, mas nas
quais os dispositivos legais só podem ser interpretados à luz daquela
prerrogativa.
Para exemplificar, no caso do § único do art. 404,
só se pode entender que a concessão de “indenização suplementar” –
diante da insuficiência dos juros de mora para cobrir os prejuízos –
seja, antes de tudo, objeto de pedido (ainda que eventual), porque só
assim poderá o réu exercer o direito de defesa em relação a tal
provimento. Portanto, não é possível tomar-se de surpresa o demandado,
impingindo-lhe condenação não pedida e, pior, sobre a qual não houve
adequado debate.
Outro exemplo está no art. 1573 que, ao tratar das causas de
impossibilidade de comunhão de vida, arrola motivos para o pedido de
separação judicial (hoje apenas divórcio?) e finaliza estatuindo que o
juiz “poderá considerar outros fatos que tornem evidente a
impossibilidade da vida em comum”. A regra deve ser entendida sob o
prisma substancial, como norma de encerramento, diante da
impossibilidade de o Legislador prever todos os fatos que possam
caracterizar o caráter inviável da vida em comum; mas nunca sob o ângulo
processual, que supostamente autorizaria o juiz a julgar fora da causa
de pedir e, portanto, sem proporcionar ao réu o adequado exercício do
contraditório.
Revendo Direito - Jan/13
Por Flávio Luiz Yarshell
http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/achados-processuais-no-codigo-civil-ii/10170
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