segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A normatização da tipicidade material no Projeto de Código Penal

Por  Thales Ferri Schoedl

A tipicidade é o juízo de adequação entre um fato e uma norma penal incriminadora. Atualmente vem sendo cada vez mais consolidada a necessidade de um exame da tipicidade sob o aspecto material, a par da tipicidade formal, ou seja, não basta que um fato encontre correspondência numa norma penal incriminadora, exigindo-se também que este mesmo fato seja materialmente típico, de acordo com princípios que devem nortear o aplicador da lei. O exame da tipicidade material não abala o conceito analítico bipartido do delito e muito menos a teoria da “ratio cognoscendi”, pois apenas confere maior amplitude à tipicidade, funcionando como antecedente lógico da ilicitude, mas sem implicar num novo requisito do delito.
Nestes termos, o controle material da tipicidade ou “controle material do tipo incriminador” (CAPEZ, Curso de Direito Penal: Parte Geral, 2010, p. 45) está alicerçado nos seguintes princípios: lesividade, insignificância, intervenção mínima, proporcionalidade, adequação social e alteridade. Não cabe aqui discorrer sobre cada um desses relevantes princípios, mas em linhas gerais não há tipicidade material quando o fato praticado pelo agente não produzir uma lesão ou ao menos um perigo de dano ao bem penalmente tutelado, bem como se essa lesão for irrisória ou puder ser reparada por outros ramos do Direito, ou ainda se a pena cominada for manifestamente desproporcional à gravidade da conduta ou do resultado, e finalmente se a conduta não for dotada de rejeição social ou não ofender interesses de terceiros. Referido controle deve ser exercitado em dois momentos: na elaboração dos tipos penais, dirigindo-se assim ao legislador, e no juízo de adequação típica, direcionado ao aplicador da lei penal.
A jurisprudência já realiza com certa tranqüilidade o exame da tipicidade material, notadamente por intermédio dos princípios da lesividade, da intervenção mínima, da insignificância e da proporcionalidade (STF, RHC 107264/DF e HC 92525 MC/RJ), mas ainda mantém certa resistência em relação aos postulados da alteridade e da adequação social, especialmente pela dificuldade de compreensão e delimitação do conceito de “inadequação social”, o que pode levar ao enfraquecimento do princípio da legalidade (STJ, REsp 585750/RJ e REsp 820406/RS).    
O Código Penal atual, assim como seus antecessores, não faz nenhuma alusão à tipicidade material – limita-se a prever o princípio da legalidade e da anterioridade no seu art. 1º, para mais adiante, no art. 23, cuidar da antijuridicidade, e assim adotar a teoria finalista da ação bipartida, não obstante respeitáveis opiniões em sentido contrário. Já o Projeto de Código Penal inovou neste ponto, pois passou a normatizar a tipicidade material ao fazer expressa alusão aos princípios da lesividade e da insignificância (arts. 14 e 28, § 1º); aliás, o próprio relatório final do Projeto fixou as seguintes diretrizes, consagrando assim o controle material da tipicidade:
          a) da necessidade de adequação às normas da Constituição de 1988 e aos tratados e convenções internacionais;
       b) da intervenção penal adequada e conforme entre a conduta e a resposta de natureza penal por parte do Estado;
         c) da seleção dos bens jurídicos imprescindíveis à paz social, em harmonia com a Constituição;
           d) da criminalização de fatos concretamente ofensivos aos bens jurídicos tutelados;
       e) da criminalização da conduta apenas quando os outros ramos do direito não puderem fornecer resposta suficiente;
            f) da relevância social dos tipos penais;
           g) da necessidade e da proporcionalidade da pena” (p. 06). 
Pois bem, o art. 14, “caput”, do Projeto do Código Penal, ao tratar do “fato criminoso”, assim dispõe: “A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva, a determinado bem jurídico”. Adotou-se assim a teoria do bem jurídico e o princípio da lesividade, e neste ponto o Projeto é digno de aplausos, tendo em vista sua evolução em relação ao Código anterior, que sempre fazia menção ao resultado naturalístico, mas não tratava do resultado jurídico, de idêntica relevância na teoria geral do crime.
         Sempre entendemos que o bem jurídico, definido como o interesse penalmente tutelado, possui concreta aferição, não assistindo razão a autores como Hans Welzel, que o compara às “peças de museu guardadas em vitrines ou resguardadas contra influências prejudiciais” (Estudios de Derecho Penal, 2007, p. 47-48). Com a normatização do bem jurídico e do princípio da lesividade, o exame da tipicidade material certamente encontrará menor resistência e assim será possível ao aplicador da lei afastá-la com maior segurança quando verificar, no caso concreto, que uma determinada conduta, embora formalmente típica, não é apta para vulnerar o bem jurídico. Na mesma esteira, ao mencionar que a ação ou omissão, dolosa ou culposa, pode produzir uma ofensa potencial ou efetiva ao bem jurídico, o Projeto parece não deixar dúvidas sobre a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Em seu parágrafo único, no entanto, apesar de sabiamente adotar a teoria da imputação objetiva para reger a relação de causalidade, o Projeto pecou na redação do dispositivo: “O resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou incremento de um risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo”. A fórmula “criação ou incremento de um risco tipicamente relevante”, embora consagrada pela melhor doutrina (ROXIN, Estudos de Direito Penal, 2006, p. 104-109), ainda permanece desconhecida dos operadores do Direito não familiarizados com a dogmática penal – o que dizer então do leigo, que é o destinatário final da norma penal; aliás, tal metodologia em muito se afasta do relatório final do Projeto, o qual preconiza uma “linguagem mais clara e acessível” (p. 09).

Do princípio da insignificância o Projeto cuidou em seu art. 28, parágrafo 1º, nos termos seguintes: “Também não haverá fato criminoso quando cumulativamente se verificarem as seguintes condições:
         a) mínima ofensividade da conduta do agente;
         b) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento;
         c) inexpressividade da lesão jurídica provocada”.

É de conhecimento que as lesões de pequena intensidade não justificam a proteção do Direito Penal (“de minimis non curat praetor”), de tal sorte que o princípio da insignificância ou crime de bagatela é uma decorrência dos princípios da lesividade e da intervenção mínima, não havendo justificativa para a aplicação do Direito Penal quando a lesão ao bem jurídico for irrisória.

Neste ponto, porém, faltou precisão técnica ao Projeto. De início o art. 28, “caput”, repete as excludentes de antijuridicidade previstas no art. 23, incisos I a III do Código Penal atual, porém menciona a “exclusão do fato criminoso” e não a “exclusão de ilicitude”. Assim, em princípio não é possível saber se as situações ali previstas excluem a antijuridicidade ou o próprio fato típico, o que caracteriza um inaceitável retrocesso à teoria da “ratio essendi”, de Edmund Mezger (Tratado de Derecho Penal, 1933, p. 308), ou o que é pior, a adoção da indesejável teoria dos elementos negativos do tipo, de Adolf Merkel (Apud ZAFFARONI, Manual de Derecho Penal: Parte General, 2011, p. 352), o que certamente não deve refletir o pensamento da maioria dos integrantes da Comissão responsável pela elaboração do Projeto de Código Penal.

Por outro lado, a insignificância da lesão insere-se na tipicidade material – ou na tipicidade conglobante (ZAFFARONI, op. cit., p. 371) – e não na antijuridicidade, não havendo razão para seu tratamento em dispositivo aparentemente dedicado às excludentes de ilicitude, apesar de sua menção à “exclusão do fato criminoso”. As próprias condições necessárias ao reconhecimento do crime de bagatela, elencadas no art. 28, parágrafo 1º, do Projeto, são idênticas àquelas fixadas em acórdão paradigma relatado pelo eminente Ministro Celso de Mello e que, nos termos de seu voto e da ementa, integram a tipicidade material e não a antijuridicidade (STF, HC 84412/SP, Segunda Turma, j. 19.10.2004).

Melhor seria se o princípio da insignificância não fosse normatizado, justamente por se tratar de uma conseqüência do postulado da lesividade, já previsto no art. 14 do Projeto; quando muito, os requisitos para a aplicação de tal princípio deveriam ser previstos num parágrafo do art. 14, que trata do fato criminoso e da relação de causalidade, mas jamais em norma permissiva que agasalha as excludentes de antijuridicidade.

 Em suma, a normatização da teoria do bem jurídico e do princípio da lesividade já é suficiente para fundamentar o controle material da tipicidade, não havendo necessidade de elencar os demais princípios que o regem, por duas razões: a uma porque a Constituição Federal e o Código Penal já preveem aqueles princípios de maneira implícita, os quais são aptos para fundamentar um controle material da tipicidade eficiente e de acordo com as garantias do acusado; a duas porque a elaboração de uma norma penal neste sentido poderia dificultar a interpretação do aplicador da lei quando se deparar com novos princípios que integrem a tipicidade material, pois certamente não faltariam argumentos positivistas para impedir a ampliação desse controle. É imperativa, todavia, a necessidade de uma sinergia entre a tipicidade formal e material, pois se a primeira já não é suficiente para completar o juízo de adequação típica, a segunda deve ser exercitada com moderação, para não desconstituir um direito fundamental conquistado ao longo de décadas.

Revendo Direito - Jan/13
Por Thales Ferri Schoedl
http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-normatizacao-da-tipicidade-material-no-projeto-de-codigo-penal/10280


Nenhum comentário:

Postar um comentário