Por Thales Ferri Schoedl
A tipicidade é o juízo de
adequação entre um fato e uma norma penal incriminadora. Atualmente vem
sendo cada vez mais consolidada a necessidade de um exame da tipicidade
sob o aspecto material, a par da tipicidade formal, ou seja, não basta
que um fato encontre correspondência numa norma penal incriminadora,
exigindo-se também que este mesmo fato seja materialmente típico, de
acordo com princípios que devem nortear o aplicador da lei. O exame da
tipicidade material não abala o conceito analítico bipartido do delito e
muito menos a teoria da “ratio cognoscendi”, pois apenas confere maior
amplitude à tipicidade, funcionando como antecedente lógico da
ilicitude, mas sem implicar num novo requisito do delito.
Nestes termos, o controle material da
tipicidade ou “controle material do tipo incriminador” (CAPEZ, Curso de
Direito Penal: Parte Geral, 2010, p. 45) está alicerçado nos seguintes
princípios: lesividade, insignificância, intervenção mínima,
proporcionalidade, adequação social e alteridade. Não cabe aqui
discorrer sobre cada um desses relevantes princípios, mas em linhas
gerais não há tipicidade material quando o fato praticado pelo agente
não produzir uma lesão ou ao menos um perigo de dano ao bem penalmente
tutelado, bem como se essa lesão for irrisória ou puder ser reparada por
outros ramos do Direito, ou ainda se a pena cominada for manifestamente
desproporcional à gravidade da conduta ou do resultado, e finalmente se
a conduta não for dotada de rejeição social ou não ofender interesses
de terceiros. Referido controle deve ser exercitado em dois momentos: na
elaboração dos tipos penais, dirigindo-se assim ao legislador, e no
juízo de adequação típica, direcionado ao aplicador da lei penal.
A jurisprudência já realiza com certa
tranqüilidade o exame da tipicidade material, notadamente por intermédio
dos princípios da lesividade, da intervenção mínima, da insignificância
e da proporcionalidade (STF, RHC 107264/DF e HC 92525 MC/RJ), mas ainda
mantém certa resistência em relação aos postulados da alteridade e da
adequação social, especialmente pela dificuldade de compreensão e
delimitação do conceito de “inadequação social”, o que pode levar ao
enfraquecimento do princípio da legalidade (STJ, REsp 585750/RJ e REsp
820406/RS).
O Código Penal atual, assim como seus
antecessores, não faz nenhuma alusão à tipicidade material – limita-se a
prever o princípio da legalidade e da anterioridade no seu art. 1º,
para mais adiante, no art. 23, cuidar da antijuridicidade, e assim
adotar a teoria finalista da ação bipartida, não obstante respeitáveis
opiniões em sentido contrário. Já o Projeto de Código Penal inovou neste
ponto, pois passou a normatizar a tipicidade material ao fazer expressa
alusão aos princípios da lesividade e da insignificância (arts. 14 e
28, § 1º); aliás, o próprio relatório final do Projeto fixou as
seguintes diretrizes, consagrando assim o controle material da
tipicidade:
a) da necessidade de adequação às normas da Constituição de 1988 e aos tratados e convenções internacionais;
b) da intervenção penal adequada e conforme entre a conduta e a resposta de natureza penal por parte do Estado;
c) da seleção dos bens jurídicos imprescindíveis à paz social, em harmonia com a Constituição;
d) da criminalização de fatos concretamente ofensivos aos bens jurídicos tutelados;
e) da criminalização da conduta apenas quando os outros ramos do direito não puderem fornecer resposta suficiente;
f) da relevância social dos tipos penais;
g) da necessidade e da proporcionalidade da pena” (p. 06).
Pois bem, o art. 14, “caput”, do Projeto
do Código Penal, ao tratar do “fato criminoso”, assim dispõe: “A
realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa,
que produza ofensa, potencial ou efetiva, a determinado bem jurídico”.
Adotou-se assim a teoria do bem jurídico e o princípio da lesividade, e
neste ponto o Projeto é digno de aplausos, tendo em vista sua evolução
em relação ao Código anterior, que sempre fazia menção ao resultado
naturalístico, mas não tratava do resultado jurídico, de idêntica
relevância na teoria geral do crime.
Sempre entendemos que o bem
jurídico, definido como o interesse penalmente tutelado, possui concreta
aferição, não assistindo razão a autores como Hans Welzel, que o
compara às “peças de museu guardadas em vitrines ou resguardadas contra
influências prejudiciais” (Estudios de Derecho Penal, 2007, p. 47-48).
Com a normatização do bem jurídico e do princípio da lesividade, o exame
da tipicidade material certamente encontrará menor resistência e assim
será possível ao aplicador da lei afastá-la com maior segurança quando
verificar, no caso concreto, que uma determinada conduta, embora
formalmente típica, não é apta para vulnerar o bem jurídico. Na mesma
esteira, ao mencionar que a ação ou omissão, dolosa ou culposa, pode
produzir uma ofensa potencial ou efetiva ao bem jurídico, o Projeto
parece não deixar dúvidas sobre a constitucionalidade dos crimes de
perigo abstrato. Em seu parágrafo único, no entanto, apesar de
sabiamente adotar a teoria da imputação objetiva para reger a relação de
causalidade, o Projeto pecou na redação do dispositivo: “O resultado
exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da
criação ou incremento de um risco tipicamente relevante, dentro do
alcance do tipo”. A fórmula “criação ou incremento de um risco
tipicamente relevante”, embora consagrada pela melhor doutrina (ROXIN,
Estudos de Direito Penal, 2006, p. 104-109), ainda permanece
desconhecida dos operadores do Direito não familiarizados com a
dogmática penal – o que dizer então do leigo, que é o destinatário final
da norma penal; aliás, tal metodologia em muito se afasta do relatório
final do Projeto, o qual preconiza uma “linguagem mais clara e
acessível” (p. 09).
Do princípio da insignificância o
Projeto cuidou em seu art. 28, parágrafo 1º, nos termos seguintes:
“Também não haverá fato criminoso quando cumulativamente se verificarem
as seguintes condições:
a) mínima ofensividade da conduta do agente;
b) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento;
c) inexpressividade da lesão jurídica provocada”.
É de conhecimento que as lesões de
pequena intensidade não justificam a proteção do Direito Penal (“de
minimis non curat praetor”), de tal sorte que o princípio da
insignificância ou crime de bagatela é uma decorrência dos princípios da
lesividade e da intervenção mínima, não havendo justificativa para a
aplicação do Direito Penal quando a lesão ao bem jurídico for irrisória.
Neste ponto, porém, faltou precisão
técnica ao Projeto. De início o art. 28, “caput”, repete as excludentes
de antijuridicidade previstas no art. 23, incisos I a III do Código
Penal atual, porém menciona a “exclusão do fato criminoso” e não a
“exclusão de ilicitude”. Assim, em princípio não é possível saber se as
situações ali previstas excluem a antijuridicidade ou o próprio fato
típico, o que caracteriza um inaceitável retrocesso à teoria da “ratio
essendi”, de Edmund Mezger (Tratado de Derecho Penal, 1933, p. 308), ou o
que é pior, a adoção da indesejável teoria dos elementos negativos do
tipo, de Adolf Merkel (Apud ZAFFARONI, Manual de Derecho Penal: Parte
General, 2011, p. 352), o que certamente não deve refletir o pensamento
da maioria dos integrantes da Comissão responsável pela elaboração do
Projeto de Código Penal.
Por outro lado, a insignificância da
lesão insere-se na tipicidade material – ou na tipicidade conglobante
(ZAFFARONI, op. cit., p. 371) – e não na antijuridicidade, não havendo
razão para seu tratamento em dispositivo aparentemente dedicado às
excludentes de ilicitude, apesar de sua menção à “exclusão do fato
criminoso”. As próprias condições necessárias ao reconhecimento do crime
de bagatela, elencadas no art. 28, parágrafo 1º, do Projeto, são
idênticas àquelas fixadas em acórdão paradigma relatado pelo eminente
Ministro Celso de Mello e que, nos termos de seu voto e da ementa,
integram a tipicidade material e não a antijuridicidade (STF, HC
84412/SP, Segunda Turma, j. 19.10.2004).
Melhor seria se o princípio da
insignificância não fosse normatizado, justamente por se tratar de uma
conseqüência do postulado da lesividade, já previsto no art. 14 do
Projeto; quando muito, os requisitos para a aplicação de tal princípio
deveriam ser previstos num parágrafo do art. 14, que trata do fato
criminoso e da relação de causalidade, mas jamais em norma permissiva
que agasalha as excludentes de antijuridicidade.
Em suma, a normatização da teoria do
bem jurídico e do princípio da lesividade já é suficiente para
fundamentar o controle material da tipicidade, não havendo necessidade
de elencar os demais princípios que o regem, por duas razões: a uma
porque a Constituição Federal e o Código Penal já preveem aqueles
princípios de maneira implícita, os quais são aptos para fundamentar um
controle material da tipicidade eficiente e de acordo com as garantias
do acusado; a duas porque a elaboração de uma norma penal neste sentido
poderia dificultar a interpretação do aplicador da lei quando se deparar
com novos princípios que integrem a tipicidade material, pois
certamente não faltariam argumentos positivistas para impedir a
ampliação desse controle. É imperativa, todavia, a necessidade de uma
sinergia entre a tipicidade formal e material, pois se a primeira já não
é suficiente para completar o juízo de adequação típica, a segunda deve
ser exercitada com moderação, para não desconstituir um direito
fundamental conquistado ao longo de décadas.
Revendo Direito - Jan/13
Por Thales Ferri Schoedl
http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-normatizacao-da-tipicidade-material-no-projeto-de-codigo-penal/10280
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