Por Renata de Lima Rodrigues
Mais
uma vez, a arte imita a vida e levanta uma discussão que, talvez, se apresente
como uma das mais complicadas no âmbito do Direito de Família contemporâneo: a
(não) prevalência de uma forma de parentesco sobre outra, ou mais precisamente,
a (não) prevalência do parentesco biológico sobre o parentesco socioafetivo, e
vice-versa.
A
atual novela da Globo, Amor à Vida, após suscitar a polêmica em torno do uso da
Barriga de aluguel por um casal homossexual, envolve em sua trama uma complexa
discussão em torno da filiação da menina Paulinha, filha registral e
socioafetiva do personagem Bruno e filha biológica dos personagens Paloma e
Ninho.
Paulinha
foi furtada pelo tio, logo após seu nascimento, e abandonada em uma caçamba de
entulhos. Foi encontrada pelo personagem Bruno, que havia acabado de perder
mulher e bebê no parto. Bruno tomou a menina pra si e registrou a criança como
se sua fosse, praticando crime de falsidade ideológica, popularmente designado
de “adoção à brasileira”.
Durante
anos, Bruno criou Paulinha como se filha fosse e exerceu a autoridade parental
de forma plena, propiciando à menina o acesso a todos os direitos fundamentais
da criança, sobretudo, o acesso ao direito à convivência familiar saudável. Por
uma coincidência do destino, daqueles que só ocorrem mesmo na ficção, Bruno e
Paloma engataram um romance, Paulinha precisou de um transplante de fígado e,
em razão disso, Paloma descobre que é mãe biológica da menina.
A
partir disso, Paloma toma a guarda de fato da criança pra si e alega que não
irá devolver a menina ao pai registral e socioafetivo. Eis aqui o primeiro
problema da novela: a rigor, a relação jurídica de filiação encontra-se
formalmente estabelecida entre Bruno e Paulinha, e não entre Paloma e Paulinha.
Portanto, em princípio, o direito de ter a guarda consigo é do pai registral,
pois é ele quem titulariza e exerce a autoridade parental. A atitude de Paloma
viola a lei. Diante desse panorama, haveria a possibilidade de Bruno ajuizar
ação de busca e apreensão de menores e exercer a prerrogativa de detentor da
autoridade parental, encampada no art. 1634, CC, para reaver sua filha de quem
quer que injustamente a possua.
Paloma
só teria condições de lutar pela guarda da menina a partir do momento que
ficasse provada e registrada a maternidade biológica. Ainda assim, na hora de
se apreciar judicialmente a guarda, o juiz deveria tomar uma decisão que
levasse em conta a orientação hermenêutica do princípio do melhor interesse da
criança e do adolescente (art. 227, CF), analisando quem reúne as melhores
condições pra ter o filho em sua companhia.
Outro
ponto fundamental é o seguinte: Com o reconhecimento do parentesco biológico de
Paloma e Ninho em relação a Paulinha, o vínculo parental socioafetivo entre
Paulinha e Bruno deve ser rompido? O registro deve ser anulado para constar
apenas os nomes de Ninho e Paloma como pais da criança? Ou será que o vínculo
socioafetivo construído entre Bruno e Paulinha deve prevalecer sobre a verdade
biológica?
Há
algum tempo atrás, noticiamos neste Blog que o STF, em votação no Plenário
Virtual, reconheceu repercussão geral em tema que discute a prevalência, ou
não, da paternidade socioafetiva sobre a biológica. A questão chegou à Corte
por meio do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 692186, interposto contra
decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que inadmitiu a remessa do
recurso extraordinário para o STF. No processo, foi requerida a anulação de
registro de nascimento feito pelos avós paternos, como se estes fossem os pais,
e o reconhecimento da paternidade do pai biológico.
Existe,
de fato, uma tendência na doutrina especializada em priorizar os laços afetivos
em detrimento da verdade biológica. Contudo, como já escrevemos no Blog,
respeitosamente, não concordamos com esse posicionamento. Não é possível, fora
do caso concreto, estabelecer uma hierarquia de parentescos, sem levar em conta
as particularidades de cada demanda. Basta analisarmos a situação desenhada
pela novela.
Como impedir a vinculação de Paloma e Ninho à criança, se os
mesmos foram alijados criminosamente do exercício da paternidade e da maternidade?
Como puni-los por um crime que não foram eles que cometeram? E, de outro lado,
como ignorar a profunda relação e a verdadeira vinculação afetiva entre Bruno e
Paulinha, e que também existe em relação à família extensa, como avós, tios
etc?
Quando
comentamos a decisão do STF, que atribui repercussão geral à decisão da
prevalência do parentesco socioafetivo sobre o parentesco biológico, apontamos
que uma das soluções para casos como este seria a aplicação da
multiparentalidade, permitindo a múltipla e simultânea vinculação parental de
Paulinha tanto em relação aos pais socioafetivos, quanto em relação aos pais
biológicos.
Paulinha
teria dois pais e duas mães ao mesmo tempo? Sim, teria, em nome de sua integral
proteção, por força da aplicação do princípio do melhor interesse da criança e
do adolescente. Casos como este não podem ser julgados a partir de uma
hierarquização apriorística de formas de parentesco, mas pela perspectiva do
melhor interesse da criança e do adolescente, de modo que a decisão tomada
sobreleve seus interesses, proporcionando reais vantagens e benefícios para a
criança.
Já
há decisões em nosso país que consagram a multiparentalidade como um novo
arranjo de parentesco. Festejada decisão de primeira instância foi proferida em
novembro de 2011, pela Juíza Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, na 01ª
Vara Cível da Comarca de Ariquemes/RO, nos autos da ação de investigação de
paternidade nº 0012530-95.2010.8.22.0002. Talvez, seja possível afirmar se
tratar da primeira sentença que reconheceu e declarou a dupla paternidade
propriamente dita de uma menina, fazendo constar em seu assento registral os
nomes do pai biológico e afetivo da criança, sem prejuízo da manutenção do
registro materno. Depois disso, recentemente, nova decisão foi proferida pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo (AC 0006422-26.2011.8.26.0286; 1ª C.D. Priv.;
Relator Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, DJESP 11/102012) que comandou o
registro de um adolescente em nome de seu pai biológico, sua mãe biológica e
sua madrasta, como mãe socioafetiva.
São
decisões que apontam para um novo fato que não pode ser desconsiderado pela
doutrina mais atenta: não há, a priori, nenhum tipo de prevalência ou
hierarquia do parentesco biológico sobre o socioafetivo e vice-versa. O que
ocorre é que em muitos casos ambos são fundamentais na vida e na edificação da
identidade e da personalidade da pessoa, devendo ser preservados em nome da
dignidade da pessoa humana e do princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente.
O Direito Revisto – Ago/13
Publicado originalmente em: Ibijus
Nenhum comentário:
Postar um comentário