Por Tânia da Silva Pereira
Pode nos definir o que é o Cuidado no contexto jurídico?
Os estudos desenvolvidos sobre o cuidado
no mundo jurídico assumem caráter constitucional ao identificá-lo
inicialmente como valor jurídico, conduzindo ao seu reconhecimento como
subprincípio do Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana. Atendendo a inúmeras situações de vulnerabilidade, sua
identificação também está ligada à solidariedade, à tolerância, à
paciência e, especialmente, à prevenção.
Vera Regina Waldow, em seus livros e
textos, referindo-se à “expressão humanizadora do cuidado”, preconiza o
“cuidado integral do ser humano em dimensões físicas, sociais,
emocionais e espirituais”, vinculando-o também às influências ambientais
e culturais.
Duas decisões precursoras no Superior
Tribunal de Justiça, ambas sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi,
buscaram no cuidado um dos seus fundamentos: na primeira, reconheceu a
3ª Turma o legítimo interesse do padrasto para postular a destituição do
poder familiar e a adoção da enteada, com base na socioafetividade e no
cuidado, entendido neste último a “essência da existência humana” (STJ,
3ª Turma, REsp n° 1.106.637/SP, Julg.: 01/06/2010, DJe: 01/07/2010); na
segunda decisão, a 3ª Turma, julgando um caso de abandono afetivo de um
pai em relação à filha, entendeu pela condenação no pagamento de
indenização por dano moral, acolhendo, dentre os seus fundamentos, a
ausência do cuidado, o qual, na visão da Ilustre Relatora, alcança o
status de obrigação legal, “superando o grande empeço sempre declinado
quando se discute o abandono afetivo – a impossibilidade de se obrigar a
amar” (STJ, 3ª Turma, REsp n° 1.159.242/SP, Julg.: 24.04.2012, DJe:
10/05/2012).
O cuidado, assim, adquire papel
fundamental no delineamento de direitos e obrigações no âmbito das
relações familiares, que constituem a estrutura basilar de toda a
sociedade. Sua caracterização é relevante para que seja possível
identificar e regular situações que exigem tratamento diferenciado por
suas peculiaridades, traduzidas pelas diversas nuances sob as quais a
família contemporânea tem se configurado.
Trata-se de um tema interdisciplinar? Quais são as ciências auxiliares?
Preliminarmente, seu desenvolvimento se
deu na área da saúde, na busca de novos paradigmas para o atendimento
dos pacientes hospitalizados ou institucionalizados. Na psicologia, na
filosofia, na sociologia, na pedagogia social e na assistência social,
no entanto, o cuidado busca subsídios desvinculados da ideia de
assistencialismo e dependência.
Diante das grandes conquistas no âmbito
da responsabilidade civil, Sergio Cavalieri Filho refere-se ao “dever de
cuidado objetivo” traduzido na cautela, atenção, ou diligência,
necessárias para que o atuar da pessoa não resulte lesão a bens
jurídicos alheios. Para ele, ”a inobservância do dever do cuidado torna a
conduta culposa”.
Como os alimentos são vistos sob a ótica do cuidado?
O direito de receber alimentos
concretiza-se como manifestação de solidariedade econômica que existe em
vida entre os membros de um mesmo grupo. Em consonância com o
pensamento de Rosana Amaral Girardi Fachin, “os alimentos estão
fundamentados no princípio da dignidade humana e no da solidariedade
social, constituindo-se em prestações personalíssimas entre as partes
que compõem essa relação jurídica, ligada pelo vínculo de parentesco
(inclusive socioafetivo)”.
O cuidado se apresenta como valor
implícito nas normas de proteção, refletindo o direito aos alimentos e o
dever de prestá-los. Esta reciprocidade também presente na essência do
cuidado está expressa no art. 229-CF como “dever dos pais de assistir,
criar e educar os filhos menores”, sem afastar o “dever dos filhos
maiores de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou
enfermidade”.
Porque tantas controvérsias nos Tribunais quanto à possibilidade de indenização por abandono afetivo?
A discussão que permeia a possibilidade
de indenização por abandono afetivo gira em torno da caracterização da
prática de ato ilícito, que não era aceita pelos tribunais sob os
argumentos de que a perda do poder familiar já representava a punição
para o caso de abandono ou de descumprimento injustificado do dever de
sustento, guarda e educação dos filhos, e de que a imposição da
condenação poderia encerrar a “possibilidade de um pai, seja no
presente, seja perto da velhice, buscar o amparo do amor dos filhos”
(STJ, 4ª Turma, REsp nº 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, Julg.:
29/11/2005, DJe: 27/03/2006; STJ, 4ª Turma, REsp nº 514.350/SP, Rel.
Min. Aldir Passarinho Júnior, Julg.: 28/04/2009, DJe: 25/05/2009).
No entanto, este entendimento vem sendo
alterado, como se observa na recente decisão da 3ª Turma, sob a
relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que reconheceu como ato ilícito o
descumprimento da imposição legal de cuidar dos filhos sob a forma de
omissão, dando ensejo à indenização pelo abandono afetivo do filho pelo
pai (STJ, REsp n° 1.159.242/SP, Julg.: 24/04/2012, DJe: 10/05/2012). O
referido Acórdão baseou-se na “crescente percepção do cuidado como valor
jurídico apreciável e sua repercussão no âmbito da responsabilidade
civil, pois, constituindo-se o cuidado fator curial à formação da
personalidade do infante, deve ele ser alçado a um patamar de relevância
que mostre o impacto que tem na higidez psicológica do futuro
adulto”.Neste sentido, a partir da elevação do cuidado a valor jurídico e
obrigação legal, admite-se a possibilidade de o filho pleitear
indenização pelo descumprimento deste dever previsto pela lei aos pais.
Em seu voto, a relatora esclarece que, nestas situações, “não se fala ou
se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é
dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou
adotarem filhos”.
Dentro deste tema como a senhora define a Paternidade Responsável como dever jurídico?
O art. 226, § 7º da CF-88 elevou a
Paternidade Responsável a princípio constitucional, determinando aos
pais o dever jurídico de sustento, guarda e de educação da prole,
preconizado pelo art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n°
8.069/90). É importante observar que o cuidado permeia todo este
complexo de direitos e deveres, que não se extingue com o divórcio e que
deve ser exercido em consonância com o princípio do Melhor Interesse da
Criança.
Há tema muito polêmico e atual que trata sobre a responsabilidade parental na obesidade infantojuvenil. Pode nos explicar?
O ordenamento jurídico pátrio,
reconhecendo o princípio da Paternidade Responsável, exige que os pais,
no poder-dever de educar, através do exercício do poder familiar,
estabeleçam determinados limites necessários ao desenvolvimento sadio
dos filhos. O art. 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê de
forma específica o direito à vida e à saúde da criança e do adolescente,
“mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o
nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas
de existência”. Ressalta-se que a garantia deste direito é
responsabilidade da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder público, por força do art. 4º do mesmo diploma legal.
Neste contexto, cabe, primeiramente, aos
pais, detentores do poder familiar, a escolha dos alimentos que deverão
ser consumidos pelos filhos, não havendo, a priori, na legislação,
sanção específica que determine um tipo de alimentação adequada nos
casos de Obesidade Infantojuvenil. No entanto, a partir do momento em
que os pais são omissos ou negligentes quanto ao dever de cuidar e
educar o filho no que se refere à alimentação, a interferência do Poder
Público, na função de garantidor dos direitos fundamentais da criança e
do adolescente, torna-se necessária para que o direito à vida e à saúde
daquela pessoa em condição peculiar de desenvolvimento seja preservado.
Dessa forma, embora a alimentação da
prole se encontre na esfera do exercício do poder familiar dos pais,
quando estes estejam sendo omissos ou negligentes, possibilitando o
aumento excessivo de peso dos filhos, que é altamente prejudicial ao seu
desenvolvimento, deve haver interferência estatal para proteger o
direito constitucional à vida e à saúde da criança ou do adolescente que
se encontre nesta situação.
Qual a sua opinião sobre a decisão do STJ que permitiu a adocão por pares homoafetivos?
A decisão do STJ afirmou que a orientação
sexual não pode ser impecilho para a adoção, se se comprovar, através
de uma equipe técnica eficiente, que existe uma estabilidade afetiva no
relacionamento entre os pretendentes, no caso duas mulheres. Neste tipo
de adoção é fundamental o acompanhamento do estágio de convivência pelos
técnicos, mesmo após a concessão da medida através de sentença
judicial. Os pares homossexuais que buscam maduramente uma adoção,
optam pelo reconhecimento de uma família autêntica e tendem a reproduzir
o que receberam como valores dos seus pais, o que não tem nada a ver
com sua preferência sexual ou escolha de vida.O que deve ser
considerado, efetivamente, são as aptidões dos candidatos ao assumir uma
criança ou adolescente e oferecer condições necessárias ao seu
desenvolvimento e socialização. A decisão do STJ considerou o “melhor
interesse da criança” e priorizou “a qualidade do vínculo e do afeto
presentes no meio familiar que ligam as crianças a seus cuidadores”.
(REsp 889.852-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. em
27/4/2010). Esses elementos efetivamente traduzem a essência do
“cuidado”, pois envolvem, além de exemplar relação de “maternagem”, atenção
integral, carinho, aconchego, generosidade e compreensão. Merecem, no
entanto, um estudo mais profundo os desdobramentos e consequências
dessas adoções. Apesar de privilegiar o acolhimento de crianças ou
adolescentes, na sua maioria, institucionalizados, temos que ter nítida a
orientação psicológica no sentido de lhes oferecer modelos distintos de
identificação que lhes permitam reconhecer seu próprio sexo,
proporcionando-lhes a oportunidade de fazer suas escolhas, sem
preconceitos e discriminações.
O Direito Revisto - Mar/13
http://www.cartaforense.com.br/conteudo/entrevistas/cuidado-no-direito-de-familia-infancia-e-juventude/10588
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