segunda-feira, 15 de abril de 2013

Alimentos compensatórios: desvio de categoria e um engano perigoso


Por Prof. José Fernando Simão
 
Não faz muito tempo que ouvi pela primeira vez o termo alimentos compensatórios. Foi no Congresso do IBdfam de 2011 quando palestrava sobre o tema um dos grandes juristas brasileiros o Prof. Rodrigo Toscano de Brito.

Dizia o amigo que os alimentos compensatórios são devidos, com apoio nas lições de Rolf Madaleno, quando havendo ruptura do vínculo conjugal se produzir um desequilíbrio econômico em comparação com o estilo de vida experimentado durante a convivência matrimonial. Compensatórios são estes alimentos pois compensam a sensível disparidade que o separando alimentário irá deparar com a separação (Direito de Família em Pauta, Livraria do Advogado).

O tema despertou meu interesse e, em razão de certa perplexidade, fiz algumas rápidas ponderações ao palestrante naquela ocasião. Resolvi estudar a questão.

Aprendi o conceito de alimentos a partir das lições de Yussef Said Cahali em sua clássica obra “Dos Alimentos”, leitura obrigatória e ponto de partida para qualquer reflexão sobre o tema (obra publicada pela RT). Diz o professor das Arcadas que os alimentos são prestações devidas, feitas para que aquele que as recebe possa subsistir, isto é, manter sua existência, realizar o direito à vida, tanto física (sustento do corpo) como intelectual e moral (cultivo e educação do espírito, do ser racional). Assim, constituem os alimentos uma modalidade de assistência imposta por lei, de ministrar os recursos necessários à subsistência, à conservação da vida, tanto física como moral e social do indivíduo.

A noção trazida pelo Professor Yussef Cahali é importante para se entender a categoria jurídica denominada alimentos. Necessária uma breve digressão teórica sobre as categorias jurídicas. É verdade que, na atualidade, há por parte de certos juristas ojeriza às categorias jurídicas e veneração dos princípios do ordenamento. Cunha-se a ideia de que cuidar das categorias é algo desnecessário, antiquado, arcaico, e que para a compreensão do Direito Civil na atualidade basta a aplicação da principiologia. É desta equivocada premissa que decorre a exacerbação no uso de valores como boa-fé objetiva, função social, dignidade da pessoa humana, entre outros. Este uso desmesurado gera o esvaziamento destes importantes valores que servem de panaceia para todos os males que afligem o Direito Civil e quiçá a humanidade.

Em suma, os alimentos, como categoria jurídica, são bens fornecidos pelos devedor ao credor que garantem sua subsistência digna, já que incluem às necessidades do corpo e da alma.

A partir desta categoria jurídica podemos dizer que os alimentos tem forte apoio na base principiológica do Direito Civil. O dever de prestar alimentos decorre das regras previstas no Código Civil (arts. 1.694 a 1.710) e tem por base o princípio da solidariedade familiar, que, por sua vez decorre da solidariedade social (art. 3º, I da CF).

As características dos alimentos decorrem diretamente deste seu conceito. A categoria jurídica bem delimitada gera consequências. Nas palavras de Yussef Cahali as características são as seguintes: irrenunciabilidade, intransmissibilidade, incessibilidade, impenhorabilidade, incompensabilidade, não transacionável e imprescritibilidade.

Os alimentos são irrenunciáveis entre parentes (art. 1.707 do Código Civil). Por mais que o filho maior e capaz esteja em situação financeira confortável, não poderá renunciar ao direito de pedir alimentos, pois estes decorrem da manutenção da vida, e esta não é disponível no Direito brasileiro (é por isso que auxílio ao suicídio está tipificado como crime). É verdade que, quanto aos alimentos entre cônjuges ou companheiros, devidos ao fim do casamento ou união estável, a questão é controversa. Há quem defenda que esses alimentos podem ser objeto de renúncia depois de devidos e não prestados, pois é permitido o não exercício do direito a alimentos (Carlos Roberto Gonçalves, Direito de Família, 2.010, p. 505) e quem discorde, por entender que o art. 1707 não admite qualquer exceção (Maria Berenice Dias, RT, 2007, p. 458).
Os alimentos não são passíveis de cessão (art. 1.707 do Código Civil). Isso quer dizer que o credor (alimentando) não pode ceder o crédito alimentar a título gratuito ou oneroso. A cessão do crédito será nula, pois a lei lhe proíbe a prática (art. 166, VII do Código Civil).

Os alimentos são impenhoráveis (art. 1707 do Código Civil). Há uma ponderação de valores. De um lado temos o crédito de alguém que precisa ser satisfeito com bens do devedor. De outro temos os alimentos que compõe o acervo patrimonial do devedor, mas de forma especial, pois os alimentos garantem a sobrevivência daquele que os recebe. A conclusão que se chega é que a lei sacrifica o valor “crédito” para permitir que os alimentos continuem no patrimônio do devedor de forma a garantir sua sobrevivência. Essa também é a razão da impenhorabilidade dos salários (art. 649, IV, do CPC).

Os alimentos não podem ser compensados (arts. 373, II e 1.707 do Código Civil). A compensação, como forma de extinção da obrigação, significa que se as partes forem reciprocamente credoras e devedoras de dívidas líquidas, vencidas e fungíveis entre si, ocorre a extinção daquela de menor valor, remanescendo devida a diferença entre elas. Supondo que a ex-mulher tem uma dívida de R$ 50.000,00 para com seu ex-marido. O Juiz fixa a pensão em favor da mulher na importância de R$ 2.000,00 por mês. Um simples cálculo matemático indica que, em razão da compensação, o marido poderia ficar sem pagar a pensão alimentícia por 25 meses. A compensação frustraria o caráter da pensão que garante a sobrevivência do alimentário. A possibilidade de compensação é afastada exatamente em razão da função precípua dos alimentos.

Os alimentos são imprescritíveis. Essa frase não é suficientemente clara. O direito de pedir os alimentos entre parentes não “prescreve” quando não exercido. O termo é inadequado. Na realidade, o não exercício da posição jurídica pelo credor não gera supressio, ou seja, não impede o exercício posterior. O tempo não tem o condão de retirar a possibilidade de os parentes pedirem alimentos. O pai, homem saudável e com boa renda, sofre uma doença que o impossibilita para o trabalha, havendo drástica redução de sua renda. Após o acidente, mesmo precisando de alimentos, não os pede aos filhos. Quanto tempo depois do acidente poderá pedir alimentos? A qualquer tempo, sem que isso configure quebra de boa-fé, pois os alimentos garantem a sobrevivência do credor. Agora, com relação aos cônjuges e companheiros, como não são parentes entre si, o que enseja a concessão de alimentos é o vínculo que os une: casamento ou união estável. Finda a união estável ou o casamento não mais será possível pedir os alimentos por ter desaparecido a causa que ensejaria o pagamento, segundo doutrina majoritária (por todos, vide Yussef Cahali).

Contudo, não se pode confundir a questão com a prescritibilidade da pretensão quando a prestação alimentar estiver fixada e vencida. Se o ex-marido deve pagar a ex-esposa a importância de R$ 2.000,00 que vence em 15 de abril de 2013, a pretensão prescreverá em 15 de abril de 2015. O prazo é prescricional de 2 anos, nos termos do art. 206, §2º do Código Civil.

Os alimentos, historicamente, são considerados intransmissíveis (art. 402 do Código Civil/16). Isso quer dizer que, com a morte do alimentante ou do alimentário, a obrigação se extingue, seguindo a máxima latina alimenta solum debentur pro tempore, quo alimentandus vivit, et pro tempore decurso post ejus mortem ad haeredes non transmitantur (Yussef Cahali, op. cit., p. 48). Contudo, o artigo 1700 do Código Civil determina que a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.694. Essa transmissibilidade tem sua explicação. Se os alimentos decorrem da solidariedade familiar e garantem o direito à vida, nada mais lógico que com a morte do devedor, os alimentos continuem a ser prestados pelo espólio do deste. É claro que a interpretação harmônica do sistema exige duas conclusões: 1) a transmissão se dá com relação às prestações vencidas e vincendas e; 2) a responsabilidade se dá nas forças da herança, não atingindo os bens pessoais dos herdeiros do devedor (art. 1.792 do CC).

A essa altura o leitor pode estar se perguntando. Se o tema do artigo é “Alimentos Compensatórios”, por que essa longa digressão a respeito das caraterísticas dos alimentos? A resposta é simples. Os chamados “alimentos” compensatórios não tem nenhuma das características acima explicadas, porque, na realidade, não se trata de alimentos.

É importante a sempre clara e percuciente lição de Rolf Madaleno sobre os “alimentos” compensatórios:

“A pensão compensatória resulta claramente diferenciada da habitual pensão alimentícia, porque põe em xeque o patrimônio e os ingressos financeiros de ambos os cônjuges, tendo os alimentos compensatórios o propósito específico de evitar o estabelecimento de um desequilíbrio econômico entre os consortes. Os alimentos compensatórios estão à margem de qualquer questionamento causal da separação, ou do divórcio dos cônjuges e da dissolução da união estável, e ingressam unicamente as circunstâncias pessoais da vida matrimonial ou afetiva, na qual importa apurar a situação econômica enfrentada com o advento da separação e se um dos consortes ficou em uma situação econômica e financeira desfavorável em relação à vida que levava durante o matrimônio, os alimentos compensatórios corrigem essa distorção e restabelecem o equilíbrio material (Responsabilidade civil na conjugalidade e alimentos compensatórios in www.rolfmadaleno.com.br)”. 

O exemplo que surge seria o seguinte. Casal que opta pelo regime da separação convencional de bens. Ele já com mais idade, mas com menos de 70 anos, com um patrimônio considerável amealhado, e ela com menos idade, mas exercendo sua profissão. Durante o casamento, em razão da boa renda do marido, o casal faz viagens ao exterior, mora em luxuoso imóvel, janta em caros restaurantes. Findo o casamento em razão de um divórcio, o juiz decide que a divorcianda tem meios de subsistência, pois trabalha, aufere renda e, portanto, não necessita da pensão alimentícia para sobreviver. Contudo, com seu salário, haveria uma mudança do padrão de vida da ex-esposa. Esta, com seus rendimentos, viveria de maneira mais modesta. Seguindo a noção de “alimentos” compensatórios deveria o ex-marido pagar um certo valor para que fosse compensado o desequilíbrio econômico existente no momento da separação

Novamente, a lição de Rolf Madaleno:

A finalidade da pensão compensatória não é a de cobrir as necessidades de subsistência do credor, como acontece com a pensão alimentícia, regulamentada pelo artigo 1.694 do Código Civil e sim corrigir o desequilíbrio existente no momento da separação, quando o juiz compara o status econômico de ambos os cônjuges e o empobrecimento de um deles em razão da dissolução da sociedade conjugal, podendo a pensão compensatória consistir em uma prestação única, por determinados meses ou alguns anos, e pode abarcar valores mensais e sem prévio termo final”.


Seguindo a doutrina de Rolf Madaleno o TJ/DFT decidiu:

“ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS. MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. Alimentos compensatórios são pagos por um cônjuge ao outro, por ocasião da ruptura do vínculo conjugal. Servem para amenizar o desequilíbrio econômico, no padrão de vida de um dos cônjuges, por ocasião do fim do casamento. Agravo não provido. (6ª Turma Cível, Agravo de Instrumento 20090020030046AGI, Rel. Des. Jair Soares, j. 10/06/2009)

A questão não acaba com estas ponderações. Há, ainda, quem defenda que os alimentos compensatórios, na realidade, não teriam essa origem: o empobrecimento de um dos cônjuges quando da dissolução da sociedade conjugal. Há quem defenda que o fundamento dos alimentos compensatórios é a previsão do parágrafo único do art. 4º da Lei 6.478/68 (lei de alimentos) que assim dispõe:

“Art. 4º As despachar o pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se o credor expressamente declarar que deles não necessita.
Parágrafo único. Se se tratar de alimentos provisórios pedidos pelo cônjuge, casado pelo regime da comunhão universal de bens, o juiz determinará igualmente que seja entregue ao credor, mensalmente, parte da renda líquida dos bens comuns, administrados pelo devedor.”

Foi com base neste dispositivo que o TJ/RS entendeu que era “correta a decisão que estabeleceu uma espécie de indenização provisória pela exploração do patrimônio comum enquanto não ultimada a partilha de bens, conforme precedentes da Corte. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. (Agravo de Instrumento Nº 70034501189, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em 29/04/2010).

Em igual sentido, o mesmo TJ/RS decidiu:

“APELAÇÃO E RECURSO ADESIVO. SEPARAÇÃO. ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS. CABIMENTO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Cabe a fixação de alimentos compensatórios, em valor fixo, decorrente da administração exclusiva por um dos cônjuges das empresas do casal. Caso em que os alimentos podem ser compensados, dependendo da decisão da ação de partilha de bens, bem como não ensejam possibilidade de execução pessoal sob o rito de prisão. O deferimento dos alimentos não implica na conclusão de que as cotas sociais das empresas do casal devem ser repartidas em 50% para cada cônjuge. Matéria essa que deverá ser julgada de forma autônoma na ação de partilha de bens. Considerando que o valor dos honorários advocatícios está abaixo da complexidade da demanda, devem ser majorados os honorários. DERAM PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO E PROVIMENTO AO RECURSO ADESIVO. (Apelação Cível Nº 70026541623, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 04/06/2009)”

Conforme se percebe, o instituto não tem unanimidade na doutrina pátria. Seriam os alimentos compensatórios devidos em razão do empobrecimento de um dos cônjuges ou companheiros (o que normalmente ocorre no regime de separação de bens) ou em razão da administração dos bens comuns por um dos cônjuges (o que ocorre nos regimes de comunhão parcial e universal)? A confusão que se verifica e acaba por aplicar a noção a duas situações completamente diversas decorre do desvio de categoria que gera um engano perigoso.

Os ditos “alimentos” compensatórios, quer tenham por causa o empobrecimento de um dos cônjuges, quer tenham por causa a administração dos bens comuns por um dos cônjuges, na realidade, não se trata de alimentos.

Em não se tratando de garantia de sobrevivência do credor, não decorrendo do binômio possibilidade de quem paga e necessidade de quem recebe, esse valor que os Tribunais fixam não podem e não devem ser denominados alimentos.

Em se tratando de valor pago para que não haja empobrecimento de um dos cônjuges ou companheiros essa importância pode ser cedida, pois se trata de crédito pecuniário como qualquer outro; pode ser transmitida, como qualquer outra dívida do falecido, pode ser objeto de renúncia, pois não tem qualquer relação com o direito à vida; pode ser compensada em sendo líquida, vencida e fungível; sofre os efeitos da supressio, ou seja o tempo impede o exercício do direito em decorrência do abandono da posição jurídica; e, também, o valor pode ser penhorado pelos credores do cônjuge que o recebe. Por fim, caso o valor seja fixado pelo juiz, a pretensão de cobrança prescreve em 10 anos conforme o caput do art. 205 do Código Civil, e não no prazo especial do parágrafo segundo do art. 206.

Alimentos que não tem nenhuma característica de alimentos não são alimentos.

Em se tratando de valor pago porque um dos cônjuges está administrando os bens comuns e recebendo seus frutos, essa importância segue exatamente o dito anteriormente: pode ser cedida, pode ser transmitida, pode ser objeto de renúncia, pode ser compensada, sofre os efeitos da supressio, e, também, o valor pode ser penhorado pelos credores do cônjuge que o recebe. Por fim, caso o valor seja fixado pelo juiz, a pretensão de cobrança prescreve em 3 anos conforme o caput do art. 206, parágrafo 3º do Código Civil, que cuida do enriquecimento sem causa e não no prazo especial do parágrafo segundo do art. 206.

Nesta última hipótese, o que alguns chamam de alimentos, por equívoco no tratamento da categoria jurídica, trata-se de renda líquida dos bens comuns (nos exatos termos da Lei de Alimentos) e esta verba não tem caráter alimentar. Visa apenas, a que o cônjuge que administra bem comum, não fique com os frutos que parcialmente pertencem ao outro. Aliás, a regra tem inspiração no Condomínio. Se um dos condôminos administra bem comum, deve entregar os frutos aos demais condôminos, pois, afinal, administra bem que só lhe pertencem em parte. E no Condomínio se fala em “alimentos” compensatórios? A resposta é negativa.

Como digressão final. Por força do art. 5º, LXVII, o devedor de alimentos que injustificadamente não paga a pensão pode ser preso, ou seja, sofrer a mais dura das sanções civis. Indago: se o devedor não pagar “alimentos” compensatórios poderá ser preso? Por óbvio que não, pois não se trata de verba alimentar.

Só que, no caso concreto, a confusão terminológica e a imprecisão em delimitar categorias jurídicas levaram o Juiz a decretar a prisão por seu não pagamento, o que, posteriormente, foi revisto pelo TJ/DFT (20090020130788HBC, Relator JAIR SOARES, 6ª Turma Cível, julgado em 21/10/2009, DJ 11/11/2009 p. 106).

Em suma, não apenas são inadmissíveis os alimentos compensatórios, como, conforme título deste artigo, representam um desvio de categoria e um engano perigoso.

O Direito Revisto – Abr/13

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