Por Prof. Carlos Ari Sundfeld
Em geral, a presença muito forte da tradição no
conhecimento jurídico é vista como normal, até desejável. Um dos sintomas é o
gosto, até entre profissionais bem jovens, por um modo de falar e de escrever
que, fora do direito, ninguém mais usa. Outro sintoma é a conservação, como atemporais,
de ideias que, tendo vingado em algum momento, viraram tradicionais. Isso é
particularmente forte entre os especialistas das grandes áreas do direito
(civil, penal, administrativo etc) que, talvez temendo a perda de identidade,
parecem mais vinculados às tradições.
Mas isso não é positivo. A linguagem antiquada não
tem que ser característica profissional. É um defeito, que atrapalha a
comunicação. Os juristas precisam se inspirar na Semana de Arte Moderna de
1922. Há 80 anos, ela trouxe a literatura brasileira para mais perto da
linguagem da vida real. O direito administrativo, que nos manuais parece tão
distante, lida com coisas próximas: a vida política e a relação das pessoas
comuns, ONGs e empresas com a Administração. Não é correto tratar disso com uma
língua que não se renova. Por isso, como professor focado no direito atual,
tenho me obrigado a mudar de estilo, abandonar o jargão. Em suma, sou cético
quanto ao conhecimento amarrado ao estilo de escrever do passado e procuro
experimentar jeitos novos, até surpreendentes.
Quem lida com o direito administrativo no Brasil
sabe que há três ideias que todo mundo repete: as da constitucionalização, dos
princípios e do legalismo. Viraram dogma. Eu sou bem cético quanto ao modo como
elas têm sido usadas na minha área. É preciso duvidar delas. Ser iconoclasta e
cético é a postura de quem tem compromisso com a realidade jurídica.
O direito administrativo tem base constitucional,
pois na Constituição estão suas normas estruturais (sobre organização dos
Poderes e direitos fundamentais, p.ex.) e muitas regras sobre organização
administrativa (direitos dos servidores, regime das entidades estatais etc).
Essas normas existem e é importante defendê-las e aplicá-las, claro. Mas isso
não justifica o excesso, que vem ocorrendo todo dia entre doutrinadores e
controladores, de maximizar a Constituição. Do que se trata? De uma
mentalidade que pressupõe que tudo está na Constituição, mesmo
implicitamente – e acha que essa pressuposição é necessária para impedir os
legisladores e administradores de tomarem decisões “indesejadas”. Maximizar a
Constituição é hiperinterpretar, inventando regras jurídicas a
partir de termos e expressões constitucionais abertos e vagos, ou princípios
supostamente implícitos.
A justificativa moral dessa tendência é garantir
maior vinculação do Estado à cidadania (afinal, a Constituição é Cidadã!),
gerando um direito mais limpo, desvinculado da luta política e dos interesses
menores. As intenções parecem boas, mas se está idealizando as normas
constitucionais. Constituição Cidadã é um mito. Boa parte das normas de 1988
não cabe nele. Constituição chapa-branca seria mais exato: são regras, em sua
maioria, para atender ao lobby de entidades estatais ou paraestatais, e de seus
membros. Além disso, nossa Constituição é bem recente, vem sendo ampliada por
emendas, tem muito texto e muita regra. Teriam os aplicadores legitimidade para
inchar artificialmente esse conteúdo? Penso que não.
Não estou dizendo, óbvio, que alguma parte da
Constituição deva deixar de ser aplicada. Mas sim que ela tem de ser realmente aplicada,
não inventada livremente por pessoas bem intencionadas. Meu ceticismo se
dirige, portanto, contra esse movimento de maximização da Constituição no
âmbito das questões administrativas. Ele precisa ser contido, sob pena de os
órgãos de controle (Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas)
perderem o foco, envolvidos em politização.
O problema com os princípios no direito administrativo
é talvez pior. Cheios de prestígio (ninguém é contra os princípios!) eles
passaram a justificar superficialmente qualquer decisão. Será que, para a
restrição da liberdade, é suficiente invocar o princípio do interesse público?
Ou que, para combatê-la, basta alegar violação aos princípios da razoabilidade
ou da dignidade da pessoa humana? Em tantos debates, inclusive em Tribunais
Superiores, é isso mesmo que ocorre. Em suma, se está caminhando para a
construção intuitiva do direito, com bons propósitos – isto é, a partir de
(bons) princípios. Esse modo de decidir é inaceitável, pois destrói pura e
simplesmente o direito, legitimando o voluntarismo. Observando essa degradação,
acabei formando visão muito cética quanto à ideia em si, tão cara aos administrativistas
brasileiros, de que o direito administrativo tem de ser sempre pensado e
aplicado a partir dos princípios. Minha impressão é que, adotado esse
pressuposto (começar tudo pelos princípios, sempre) os abusos serão
inevitáveis.
Por fim, há o ideário do legalismo, ainda forte
entre publicitas brasileiros. Segundo o legalismo, é a lei, e não a
Administração, que teria de resolver tudo o que for importante. Regulamentos e
atos administrativos não deveriam criar nada. Administrar não poderia ser
criar, mesmo com autorização legal. O administrador não poderia ser autorizado,
mesmo pela lei, a ser algo além de um braço mecânico do legislador.
Essa visão estigmatiza a função administrativa,
presumindo-a incapaz de fugir à arbitrariedade, se não estiver totalmente
limitada pelas escolhas substantivas prévias do legislador. Mas é uma
visão estranha. Afinal, o processo administrativo não existe justamente para
evitar esse tipo de arbitrariedade, inclusive quando a Administração concebe,
com discricionariedade, soluções, políticas e programas? Essa visão faz
uma caricatura da experiência jurídica – em que a Administração tem sido
autorizada a criar, com base nas leis – descrevendo-a de modo simplista como
desastrosa, incompatível com o Estado de Direito, etc. Acusação sem
prova. Por isso, sou cético também quanto a esse legalismo sebastianista,
que prega o retorno a um passado glorioso, em que a lei teria sido tudo e a
Administração nada. É lenda.
O
Direito Revisto – Abr/13
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