Por Ana Carolina Santos Duarte - Carta Forense
Desde a Constituição de 1891 se previu a possibilidade
de o STF, em grau de recurso, verificar a validade de tratados ou leis
federais, dando-se, mesmo que implicitamente, poder aos Tribunais Estaduais
para negar-lhes aplicação.
O controle concentrado de constitucionalidade,
também conhecido como sistema europeu ou austríaco, foi desenvolvido por Hans
Kelsen (vetando aos juízes deixar de aplicar uma lei até que a mesma fosse
declarada inconstitucional pela Corte Constitucional, e, assim, evitar uma
excessiva e desautorizada intervenção do Poder Judiciário nas atividades do
legislativo) e consagrado, pela primeira vez, na Constituição da Áustria de
1920.
No Brasil, essa modalidade de controle concentrado
foi introduzida na Constituição de 1946, pela Emenda Constitucional nº 16/1965,
sendo a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) inserida no ordenamento
jurídico por meio da EC nº 3/93 (art. 102, I, a, 2ª parte e § 4º do art. 103 da
CF), e, após, regulamentada pela Lei nº 9.868 de 1999.
A elaboração do instituto da ADC lastreou-se nos
estudos pioneiros realizados pelos eminentes juristas Ives Gandra Martins e
Gilmar Ferreira Mendes.
Com algumas modificações e adequações feitas ao
projeto primitivo, restou o mecanismo de defesa da constitucionalidade de lei
ou ato normativo federal objeto do nosso estudo.
CONCEITO
A ação declaratória de constitucionalidade
insere-se no sistema de controle abstrato da constitucionalidade de normas,
cuja finalidade única é a defesa da ordem jurídica, não se destinando
diretamente à tutela de direitos subjetivos. Por isso mesmo, deve ser
necessariamente estruturada em um processo objetivo, como ocorre com a ação
direta de inconstitucionalidade, isto é, um processo não contraditório, sem
partes, embora possam ser ouvidos os órgãos que participaram da elaboração da lei
ou ato normativo.[1]
Nos termos da segunda parte do art. 102, I, “a”, da
CF, a ADC somente poderá versar sobre lei ou ato normativo federal.
À ADC, faz-se mister o cumprimento de certas
condições consagradas pelas orientações jurisprudenciais de nosso Tribunal
Constitucional: a lei ou o ato normativo federal deve possuir abstração,
generalidade, impessoalidade, isto é, tão somente pode ser declaração a
constitucionalidade por meio de ADC das leis e dos atos normativos federais que se apliquem a um
número indefinido de casos.[2]
Devemos entender por leis e atos normativos
federais passíveis de ADC: disposições da Constituição propriamente ditas; leis
de todas as formas e conteúdos- observar que serão contempladas as leis formais
e materiais (leis formais ou atos normativos federais, medidas provisórias-
expedidas pelo Presidente da República em caso de Relevância ou urgência, com
força de lei, art. 62, c/c art. 84, XXXVI); decreto legislativo que contém aprovação
do Congresso aos tratados e autoriza o Presidente da República a ratificá-los
em nome do Brasil (art. 49, I, CF); decreto do Chefe do Executivo que promulga
os tratados e convenções; decreto legislativo do Congresso Nacional que
suspende a execução de ato do Executivo, em virtude de incompatibilidade com a
lei regulamentada (art. 49, V, CF); atos normativos editados por pessoas
jurídicas de direito público criadas pela União, além dos regimentos dos
Tribunais Superiores; o decreto legislativo aprovado pelo Congresso Nacional
com o escopo de sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do
poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (art. 49, V, CF);
tratados internacionais aprovados e incorporados à ordem jurídica nacional; e, por
fim, outros atos do Poder Executivo com força normativa, como pareceres da
Consultoria-Geral da República, devidamente aprovados pelo Presidente da
República (Decreto nº 92.889/86).
O STF tem competência para o julgamento das ações
diretas que questionem a constitucionalidade de leis ou atos normativos
federais perante a Constituição Federal (ADIn e ADC), enquanto os tribunais
ordinários somente detém competência para julgar ações diretas que questionem a
constitucionalidade de lei ou atos normativos estaduais ou municipais locais,
perante a Constituição do respectivo Estado.
Portanto, por força do art. 102, I, a e seu
§ 2º, somente poderá ser objeto de ADC a lei ou ato normativo federal, posto
que a opção do legislador foi restritiva. Entretanto, não há óbice de o
Estado-membro no exercício de sua autonomia política, não obstante a
observância do modelo federal, instituir uma ação análoga que tenha por objeto
lei estadual ou municipal, cujo paradigma seja a Constituição Estadual, com
tramitação perante o respectivo Tribunal de Justiça.
DECISÃO: SEUS EFEITOS, FORÇA VINCULANTE E COISA
JULGADA
O julgamento procedente da ADC tem o condão de
declarar constitucional a lei ou ato normativo discutido, tornando absoluta, e
não mais relativa, a presunção de sua legitimidade face ao ordenamento
constitucional.
A decisão proferida, seja de procedência ou não,
como regra, tem eficácia ex tunc, ou seja, retroage à data em que se
iniciou a vigência do ato, neutralizando, portanto, seus efeitos jurídicos.
Contudo, é possível que o STF, a rigor do que
preconiza o art. 27 da Lei 9868/99, restrinja os efeitos temporais de sua
decisão, fixando outro termo (data do trânsito em julgado do acórdão ou
qualquer outro momento) a partir do qual ela seja eficaz.
Esta modulação dos
efeitos temporais da decisão somente pode ser realizada se atendido dois
pressupostos: um formal, isto é, a deliberação de no mínimo dois terços dos
membros do STF; e um material, que esta deliberação esteja fundada em razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
Ao contrário do que, em regra, ocorre nos processos
subjetivos, a coisa julgada na ADC, bem como demais ações de controle
concentrado de constitucionalidade, opera efeito erga omnes (art. 28),
atingindo todos aqueles submetidos à jurisdição do STF, ainda que não
participantes do processo em que tal decisão se formou. Portanto, qualquer
sujeito poderá beneficiar-se da declaração de constitucionalidade daquela lei
ou ato, independentemente de novo reconhecimento judicial.
Luis Roberto Barroso sustenta que a decisão que
conclui pela constitucionalidade do ato- isto é, julga procedente ADC ou
improcedente ADIn- não se reveste da autoridade da coisa julgada material,
podendo o STF apreciar uma questão já definitivamente julgada, se ela retornar
à sua analise sob nova roupagem (novos fatos, novos argumentos).[3]
Perfilhamos o entendimento esposado pelo
ilustre doutrinador, cujo entendimento também anui o Min. Gilmar Ferreira
Mendes, posto que é possível renovar o pedido de declaração de
(in)constitucionalidade em caso de significativas mudanças nas circunstâncias
fáticas e nas hipóteses de relevante alteração das concepções jurídicas
dominantes, afinal, o direito é uma ciência humana, e como tal, permanece em
constante alteração e evolução.
Este é também o entendimento de Lenio Streck, ao
qual Fredie Didier Jr. discorda, afirmando que:
“Se assim fosse, estar-se-ia criando,
independentemente da lei, mais uma hipótese de coisa julgada secundum
eventum litis, o que não nos parece correto. A decisão aí, por apreciar o
mérito da demanda, faz sim coisa julgada material. Mas isso não impede que o
STF, diante de novos fatos ou argumentos, aprecie posterior pedido de
decretação de inconstitucionalidade. Isto se dá porque a decisão que declara a
constitucionalidade de ato normativo se submete à cláusula rebus sic
stantibus, admitindo nova análise, desde que alteradas as circunstâncias de
fato ou de direito. Mas aí já se estará apreciando nova demanda, distinta da
anterior, porquanto fundada em outra causa de pedir. Não haveria, assim,
violação à coisa julgada.”[4]
Importante salientar que “a eficácia vinculante não
só concerne à parte dispositiva, mas fere-se, também, aos próprios fundamentos
determinantes do julgado que o STF venha a proferir em sede de controle
abstrato. É o que se vem chamando de transcendência dos motivos determinantes”.[5]
Quanto ao efeito vinculante da decisão, explica
Teori Albino Zavascki que “quando se trata do efeito vinculante das sentenças
proferidas nas ações de controle concentrado, não é correto afirmar que ele tem
eficácia desde a origem da norma. (...) O efeito vinculante é também ex tunc,
mas seu terno inicial se desencadeia com a sentença que declarou a
constitucionalidade ou a inconstitucionalidade, e não com o início da vigência
da norma examinada. Pode-se situar, como termo inicial do efeito vinculante,
nesses casos, a data de publicação do acórdão do STF no Diário Oficial (art. 28
da Lei 9868/99)”. [6]
Isso torna-se importante para explicar-se por que a
decisão tomada na ADC não produz a automática desconstituição das relações
jurídicas anteriores a ela contrária, pois o efeito vinculante da sentença no
controle abstrato foi superveniente.
À luz do art. 462 do CPC, nos processos judiciais
em trâmite nas instâncias ordinárias ou extraordinárias, o órgão jurisdicional,
a requerimento da parte ou de ofício, deverá observar a decisão proferida pelo
STF, em sede de ADC/ADIn, no momento de julgar a ação. Em caso de inobservância
pelo magistrado, do comando firmado pelo STF, caberá a propositura de
Reclamação Constitucional, nos termos do art. 102, I, “l”, da CF, no afã de
garantir a autoridade da decisão da Corte Suprema.
O efeito vinculante da ADC também pode ensejar uma
série de situações desconfortáveis tanto para os magistrados de instâncias
inferiores como para os jurisdicionados. Para os primeiros, porque traz a
sensação de diluição do exercício de seu poder jurisdicional, visto que esta
ação traz o poder ínsito de sustar todos os julgados proferidos no âmbito do
controle difuso, substituindo-os por uma única decisão emanada da Suprema Corte
no controle concentrado das leis ou atos normativos.
Em se tratando dos jurisdicionados, é certo que se,
por um lado, traz o efeito vinculante maior segurança e estabilidade ao
Direito, evitando julgados contraditórios, por outro poderá inibir o livre
acesso à Justiça, vez que, conhecendo-se a decisão da ADC, saber-se-à de pronto
o resultado possível de todas as futuras demandas. Tomada a decisão,
automaticamente estarão encerrados os debates jurídicos sobre a matéria nas
demais instâncias, porquanto o efeito vinculante prejudicaria o seguimento de
todas as ações pertinentes em curso cuja dicção seja diversa da nela contida.
Ademais, o efeito vinculante não atinge o Poder
Legislativo, ou seja, ele não estará impedido de, diante do novo processo
legislativo, editar norma com conteúdo idêntico à que foi declarada
inconstitucional ou revogar a norma tida constitucional, substituindo-a por
outra.
É possível que uma situação jurídica concreta tenha
sido objeto de sentença já transitada em julgado, sobrevindo decisão em sentido
contrário na ADC. Nesse caso, o ajustamento e a compatibilização do direito
subjetivo terão de ser promovidos por ação rescisória, ainda dentro do prazo
decadencial previsto por lei, caso contrário, a situação individual estará
consolidada e insuscetível de ajustamento. Ou seja, a declaração em sede de
ADC, com efeitos ex tunc, não produzirá, na prática, qualquer efeito
concreto.
Comungando o entendimento de Leonardo Greco,
entendemos que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade
em controle concentrado de normas pelo STF não deve ter nenhuma influência
sobre anteriores sentenças transitadas em julgado que tenham fundamento em
entendimento contrário ao do STF sobre a questão constitucional, sob pena de
gerar uma incerteza jurídica.[7]
De todo o exposto, depreende-se que a sentença de
mérito em controle concentrado, no caso, da ADC, constitui título executivo em
favor de todos os titulares individuais de direitos subjetivos, irradiando seus
efeitos sobre todas as situações concretas, o que os autoriza a demandar em
juízo em busca do cumprimento dos direitos, do comando legal, de acordo com a
decisão do STF.
CONCLUSÃO
Não obstante a existência do controle difuso de
constitucionalidade, também adotado em vários países, o Brasil adota um sistema
misto de arguição. O controle difuso foi contemplado a partir da Constituição
de 1891, mantendo-se em todos os regimes constitucionais. Se a
inconstitucionalidade for declarada em decisão final do STF, poderá o Senado
Federal suspender a execução da lei, de forma a atribuir eficácia qual à
decisão.
Tendo em vista a finalidade precípua da ADC, qual
seja, eliminar eventual insegurança jurídica, evidenciado pela existência de
decisões discrepantes quanto à constitucionalidade da norma, em multiplicidade
de litígios, o que afeta a presunção de constitucionalidade de lei ou de ato
normativo federal, não deixa de ser a ação um mecanismo de defesa da ordem
jurídica, que é também abalada nos caso de recusa de aplicação de norma
compatível com a Lei Fundamental.
Assim, resta sobejamente evidenciado que o controle
concentrado de constitucionalidade de normas, mais precisamente a ADC, não se
opõe às garantias de acesso ao Judiciário, do contraditório, da ampla defesa e
do devido processo legal (CF/88, art. 5º, LIV e LV), especialmente porque o
processo e o julgamento da ação são da competência do Supremo Tribunal, que não
é provocado a pronunciar-se como órgão consultivo ou legislativo, mas atua sim,
diante de múltiplas controvérsias judiciais sobre a constitucionalidade da
norma questionada, no afã de ratificar sua presunção de legitimidade,
inexistindo, assim, violação do princípio da separação de Poderes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. O controle de
constitucionalidade no Direito brasileiro. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2006.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de
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Declaração de Inconstitucionalidade. 5ªed. São Paulo: RT, 2004, p. 222, apud
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MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires
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Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
SÁ, Djanira M. Radamés de. Súmula Vinculante -
análise crítica de sua adoção. Belo Horizonte: Livraria Del Rey Editora, 1996.
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TUCCI, José Rogério Cruz e. Aspectos processuais da
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ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela
de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos (Tese de Doutorado).
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na
jurisdição constitucional. São Paulo: RT, 2001.
[1] STF- ADC nº 01- Rel. Min.
Moreira Alves. Parecer emitido por Moarcir Antonio Machado da Silva.
[2] Em conformidade com o professor
da UnB e ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes, quanto ao objeto que pode vir
a motivar a propositura da ação em estudo, “assim, caberia ADC em fase de
emenda constitucional, lei complementar, lei ordinária, medida provisória, decreto
legislativo, tratado internacional devidamente promulgado, decreto do Executivo
de perfil autônomo, resolução de órgão do Poder Judiciário, do Conselho
Nacional de Justiça. Tal como sucede em relação à ADI, a ADC não pode ter por
objeto ato normativo revogado” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio
Mártires & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional.
2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008 (p. 1133).
[3] BARROSO, Luis Roberto. O
controle de constitucionalidade no direito brasileiro, op. citada, p. 152-153,
apud DIDIER JR., Fredie, op. citada, p. 510.
[4] DIDIER JR., Fredie, ob. citada,
p. 510.
[5] Voto do Min. Rel. Celso de Mello
na RCL 2986 MC/SE, DJ 18.03.2005, p. 87. Informativo nº 379, apud Fredie Didier
Jr., p. 510.
[6] Obra citada.
[7] GRECO, Leonardo. Eficácia da
declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em
relação à coisa julgada anterior. In: DIDIER, Fredie Jr. (org). Relativização
da Coisa Julgada: enfoque crítico. Salvador: JusPodivm, 2004, p. 155.
O
Direito Revisto – Abr/13
Artigo originalmente publicado em: Carta Forense
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