quarta-feira, 24 de abril de 2013

Aspectos processuais da Ação Declaratória de Constitucionalidade


Por Ana Carolina Santos Duarte - Carta Forense
 
Desde a Constituição de 1891 se previu a possibilidade de o STF, em grau de recurso, verificar a validade de tratados ou leis federais, dando-se, mesmo que implicitamente, poder aos Tribunais Estaduais para negar-lhes aplicação.

O controle concentrado de constitucionalidade, também conhecido como sistema europeu ou austríaco, foi desenvolvido por Hans Kelsen (vetando aos juízes deixar de aplicar uma lei até que a mesma fosse declarada inconstitucional pela Corte Constitucional, e, assim, evitar uma excessiva e desautorizada intervenção do Poder Judiciário nas atividades do legislativo) e consagrado, pela primeira vez, na Constituição da Áustria de 1920.

No Brasil, essa modalidade de controle concentrado foi introduzida na Constituição de 1946, pela Emenda Constitucional nº 16/1965, sendo a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) inserida no ordenamento jurídico por meio da EC nº 3/93 (art. 102, I, a, 2ª parte e § 4º do art. 103 da CF), e, após, regulamentada pela Lei nº 9.868 de 1999.

A elaboração do instituto da ADC lastreou-se nos estudos pioneiros realizados pelos eminentes juristas Ives Gandra Martins e Gilmar Ferreira Mendes.

Com algumas modificações e adequações feitas ao projeto primitivo, restou o mecanismo de defesa da constitucionalidade de lei ou ato normativo federal objeto do nosso estudo.

CONCEITO

A ação declaratória de constitucionalidade insere-se no sistema de controle abstrato da constitucionalidade de normas, cuja finalidade única é a defesa da ordem jurídica, não se destinando diretamente à tutela de direitos subjetivos. Por isso mesmo, deve ser necessariamente estruturada em um processo objetivo, como ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade, isto é, um processo não contraditório, sem partes, embora possam ser ouvidos os órgãos que participaram da elaboração da lei ou ato normativo.[1]

Nos termos da segunda parte do art. 102, I, “a”, da CF, a ADC somente poderá versar sobre lei ou ato normativo federal.           

À ADC, faz-se mister o cumprimento de certas condições consagradas pelas orientações jurisprudenciais de nosso Tribunal Constitucional: a lei ou o ato normativo federal deve possuir abstração, generalidade, impessoalidade, isto é, tão somente pode ser declaração a constitucionalidade por meio de ADC das leis e dos atos normativos federais que se apliquem a um número indefinido de casos.[2]

Devemos entender por leis e atos normativos federais passíveis de ADC: disposições da Constituição propriamente ditas; leis de todas as formas e conteúdos- observar que serão contempladas as leis formais e materiais (leis formais ou atos normativos federais, medidas provisórias- expedidas pelo Presidente da República em caso de Relevância ou urgência, com força de lei, art. 62, c/c art. 84, XXXVI); decreto legislativo que contém aprovação do Congresso aos tratados e autoriza o Presidente da República a ratificá-los em nome do Brasil (art. 49, I, CF); decreto do Chefe do Executivo que promulga os tratados e convenções; decreto legislativo do Congresso Nacional que suspende a execução de ato do Executivo, em virtude de incompatibilidade com a lei regulamentada (art. 49, V, CF); atos normativos editados por pessoas jurídicas de direito público criadas pela União, além dos regimentos dos Tribunais Superiores; o decreto legislativo aprovado pelo Congresso Nacional com o escopo de sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (art. 49, V, CF); tratados internacionais aprovados e incorporados à ordem jurídica nacional; e, por fim, outros atos do Poder Executivo com força normativa, como pareceres da Consultoria-Geral da República, devidamente aprovados pelo Presidente da República (Decreto nº 92.889/86).

O STF tem competência para o julgamento das ações diretas que questionem a constitucionalidade de leis ou atos normativos federais perante a Constituição Federal (ADIn e ADC), enquanto os tribunais ordinários somente detém competência para julgar ações diretas que questionem a constitucionalidade de lei ou atos normativos estaduais ou municipais locais, perante a Constituição do respectivo Estado.

Portanto, por força do art. 102, I, a e seu § 2º, somente poderá ser objeto de ADC a lei ou ato normativo federal, posto que a opção do legislador foi restritiva. Entretanto, não há óbice de o Estado-membro no exercício de sua autonomia política, não obstante a observância do modelo federal, instituir uma ação análoga que tenha por objeto lei estadual ou municipal, cujo paradigma seja a Constituição Estadual, com tramitação perante o respectivo Tribunal de Justiça.

DECISÃO: SEUS EFEITOS, FORÇA VINCULANTE E COISA JULGADA

O julgamento procedente da ADC tem o condão de declarar constitucional a lei ou ato normativo discutido, tornando absoluta, e não mais relativa, a presunção de sua legitimidade face ao ordenamento constitucional.

A decisão proferida, seja de procedência ou não, como regra, tem eficácia ex tunc, ou seja, retroage à data em que se iniciou a vigência do ato, neutralizando, portanto, seus efeitos jurídicos.

Contudo, é possível que o STF, a rigor do que preconiza o art. 27 da Lei 9868/99, restrinja os efeitos temporais de sua decisão, fixando outro termo (data do trânsito em julgado do acórdão ou qualquer outro momento) a partir do qual ela seja eficaz. 

Esta modulação dos efeitos temporais da decisão somente pode ser realizada se atendido dois pressupostos: um formal, isto é, a deliberação de no mínimo dois terços dos membros do STF; e um material, que esta deliberação esteja fundada em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Ao contrário do que, em regra, ocorre nos processos subjetivos, a coisa julgada na ADC, bem como demais ações de controle concentrado de constitucionalidade, opera efeito erga omnes (art. 28), atingindo todos aqueles submetidos à jurisdição do STF, ainda que não participantes do processo em que tal decisão se formou. Portanto, qualquer sujeito poderá beneficiar-se da declaração de constitucionalidade daquela lei ou ato, independentemente de novo reconhecimento judicial.

Luis Roberto Barroso sustenta que a decisão que conclui pela constitucionalidade do ato- isto é, julga procedente ADC ou improcedente ADIn- não se reveste da autoridade da coisa julgada material, podendo o STF apreciar uma questão já definitivamente julgada, se ela retornar à sua analise sob nova roupagem (novos fatos, novos argumentos).[3]

 Perfilhamos o entendimento esposado pelo ilustre doutrinador, cujo entendimento também anui o Min. Gilmar Ferreira Mendes, posto que é possível renovar o pedido de declaração de (in)constitucionalidade em caso de significativas mudanças nas circunstâncias fáticas e nas hipóteses de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes, afinal, o direito é uma ciência humana, e como tal, permanece em constante alteração e evolução.

Este é também o entendimento de Lenio Streck, ao qual Fredie Didier Jr. discorda, afirmando que:

“Se assim fosse, estar-se-ia criando, independentemente da lei, mais uma hipótese de coisa julgada secundum eventum litis, o que não nos parece correto. A decisão aí, por apreciar o mérito da demanda, faz sim coisa julgada material. Mas isso não impede que o STF, diante de novos fatos ou argumentos, aprecie posterior pedido de decretação de inconstitucionalidade. Isto se dá porque a decisão que declara a constitucionalidade de ato normativo se submete à cláusula rebus sic stantibus, admitindo nova análise, desde que alteradas as circunstâncias de fato ou de direito. Mas aí já se estará apreciando nova demanda, distinta da anterior, porquanto fundada em outra causa de pedir. Não haveria, assim, violação à coisa julgada.”[4]

Importante salientar que “a eficácia vinculante não só concerne à parte dispositiva, mas fere-se, também, aos próprios fundamentos determinantes do julgado que o STF venha a proferir em sede de controle abstrato. É o que se vem chamando de transcendência dos motivos determinantes”.[5]

Quanto ao efeito vinculante da decisão, explica Teori Albino Zavascki que “quando se trata do efeito vinculante das sentenças proferidas nas ações de controle concentrado, não é correto afirmar que ele tem eficácia desde a origem da norma. (...) O efeito vinculante é também ex tunc, mas seu terno inicial se desencadeia com a sentença que declarou a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade, e não com o início da vigência da norma examinada. Pode-se situar, como termo inicial do efeito vinculante, nesses casos, a data de publicação do acórdão do STF no Diário Oficial (art. 28 da Lei 9868/99)”. [6]

Isso torna-se importante para explicar-se por que a decisão tomada na ADC não produz a automática desconstituição das relações jurídicas anteriores a ela contrária, pois o efeito vinculante da sentença no controle abstrato foi superveniente.

À luz do art. 462 do CPC, nos processos judiciais em trâmite nas instâncias ordinárias ou extraordinárias, o órgão jurisdicional, a requerimento da parte ou de ofício, deverá observar a decisão proferida pelo STF, em sede de ADC/ADIn, no momento de julgar a ação. Em caso de inobservância pelo magistrado, do comando firmado pelo STF, caberá a propositura de Reclamação Constitucional, nos termos do art. 102, I, “l”, da CF, no afã de garantir a autoridade da decisão da Corte Suprema.

O efeito vinculante da ADC também pode ensejar uma série de situações desconfortáveis tanto para os magistrados de instâncias inferiores como para os jurisdicionados. Para os primeiros, porque traz a sensação de diluição do exercício de seu poder jurisdicional, visto que esta ação traz o poder ínsito de sustar todos os julgados proferidos no âmbito do controle difuso, substituindo-os por uma única decisão emanada da Suprema Corte no controle concentrado das leis ou atos normativos.

Em se tratando dos jurisdicionados, é certo que se, por um lado, traz o efeito vinculante maior segurança e estabilidade ao Direito, evitando julgados contraditórios, por outro poderá inibir o livre acesso à Justiça, vez que, conhecendo-se a decisão da ADC, saber-se-à de pronto o resultado possível de todas as futuras demandas. Tomada a decisão, automaticamente estarão encerrados os debates jurídicos sobre a matéria nas demais instâncias, porquanto o efeito vinculante prejudicaria o seguimento de todas as ações pertinentes em curso cuja dicção seja diversa da nela contida.

Ademais, o efeito vinculante não atinge o Poder Legislativo, ou seja, ele não estará impedido de, diante do novo processo legislativo, editar norma com conteúdo idêntico à que foi declarada inconstitucional ou revogar a norma tida constitucional, substituindo-a por outra.

É possível que uma situação jurídica concreta tenha sido objeto de sentença já transitada em julgado, sobrevindo decisão em sentido contrário na ADC. Nesse caso, o ajustamento e a compatibilização do direito subjetivo terão de ser promovidos por ação rescisória, ainda dentro do prazo decadencial previsto por lei, caso contrário, a situação individual estará consolidada e insuscetível de ajustamento. Ou seja, a declaração em sede de ADC, com efeitos ex tunc, não produzirá, na prática, qualquer efeito concreto.

 Comungando o entendimento de Leonardo Greco, entendemos que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade em controle concentrado de normas pelo STF não deve ter nenhuma influência sobre anteriores sentenças transitadas em julgado que tenham fundamento em entendimento contrário ao do STF sobre a questão constitucional, sob pena de gerar uma incerteza jurídica.[7]

De todo o exposto, depreende-se que a sentença de mérito em controle concentrado, no caso, da ADC, constitui título executivo em favor de todos os titulares individuais de direitos subjetivos, irradiando seus efeitos sobre todas as situações concretas, o que os autoriza a demandar em juízo em busca do cumprimento dos direitos, do comando legal, de acordo com a decisão do STF.

CONCLUSÃO

Não obstante a existência do controle difuso de constitucionalidade, também adotado em vários países, o Brasil adota um sistema misto de arguição. O controle difuso foi contemplado a partir da Constituição de 1891, mantendo-se em todos os regimes constitucionais. Se a inconstitucionalidade for declarada em decisão final do STF, poderá o Senado Federal suspender a execução da lei, de forma a atribuir eficácia qual à decisão.

Tendo em vista a finalidade precípua da ADC, qual seja, eliminar eventual insegurança jurídica, evidenciado pela existência de decisões discrepantes quanto à constitucionalidade da norma, em multiplicidade de litígios, o que afeta a presunção de constitucionalidade de lei ou de ato normativo federal, não deixa de ser a ação um mecanismo de defesa da ordem jurídica, que é também abalada nos caso de recusa de aplicação de norma compatível com a Lei Fundamental.

Assim, resta sobejamente evidenciado que o controle concentrado de constitucionalidade de normas, mais precisamente a ADC, não se opõe às garantias de acesso ao Judiciário, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal (CF/88, art. 5º, LIV e LV), especialmente porque o processo e o julgamento da ação são da competência do Supremo Tribunal, que não é provocado a pronunciar-se como órgão consultivo ou legislativo, mas atua sim, diante de múltiplas controvérsias judiciais sobre a constitucionalidade da norma questionada, no afã de ratificar sua presunção de legitimidade, inexistindo, assim, violação do princípio da separação de Poderes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2006.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, RT.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Cad. Direito Constitucional e Ciência Política, n.8, pág. 29/47.
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade. 5ªed. São Paulo: RT, 2004, p. 222, apud DIDIER JR., Fredie. (Org) Ações Constitucionais.
FILHO, Nagib Slaibi. Ação Declaratória de Constitucionalidade. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
GRECO, Leonardo. Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In: DIDIER, Fredie Jr. (org). Relativização da Coisa Julgada: enfoque crítico. Salvador: JusPodivm, 2004. 
MACHADO, Hugo de Brito. In: Ação Declaratória de Constitucionalidade. Obra citada. 
MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira  (orgs.). Obra citada.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
SÁ, Djanira M. Radamés de. Súmula Vinculante - análise crítica de sua adoção. Belo Horizonte: Livraria Del Rey Editora, 1996.
SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Aspectos processuais da denominada ação declaratória de constitucionalidade. In: Martins, Ives, MENDES, Gilmar. Ação Declaratória de Constitucionalidade. 1. ed. São Paulo: 1996.
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos (Tese de Doutorado).
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: RT, 2001.

[1] STF- ADC nº 01- Rel. Min. Moreira Alves. Parecer emitido por Moarcir Antonio Machado da Silva.
[2] Em conformidade com o professor da UnB e ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes, quanto ao objeto que pode vir a motivar a propositura da ação em estudo, “assim, caberia ADC em fase de emenda constitucional, lei complementar, lei ordinária, medida provisória, decreto legislativo, tratado internacional devidamente promulgado, decreto do Executivo de perfil autônomo, resolução de órgão do Poder Judiciário, do Conselho Nacional de Justiça. Tal como sucede em relação à ADI, a ADC não pode ter por objeto ato normativo revogado” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008 (p. 1133).
[3] BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, op. citada, p. 152-153, apud DIDIER JR., Fredie, op. citada, p. 510.
[4] DIDIER JR., Fredie, ob. citada, p. 510.
[5] Voto do Min. Rel. Celso de Mello na RCL 2986 MC/SE, DJ 18.03.2005, p. 87. Informativo nº 379, apud Fredie Didier Jr., p. 510.
[6] Obra citada.
[7] GRECO, Leonardo. Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In: DIDIER, Fredie Jr. (org). Relativização da Coisa Julgada: enfoque crítico. Salvador: JusPodivm, 2004, p. 155.

O Direito Revisto – Abr/13
Artigo originalmente publicado em: Carta Forense

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