Por
Prof. Luiz Flavio Gomes
Está
em vigor desde 21.12.12 a nova lei seca (Lei 12.760/12), que endureceu mais uma
vez o Código de Trânsito (dobrou o valor da multa administrativa, agravou-a no
caso de reincidência e facilitou a comprovação da embriaguez). Indaga-se: o
crime de dirigir veículo automotor em estado de embriaguez (art. 306), agora,
com a redação dada pela nova lei, é de perigo abstrato ou concreto?
Leonardo
de Bem, em livro que estamos preparando, fez uma análise dos vários
posicionamentos doutrinários relacionados com o perigo abstrato e chegou à
conclusão de que o delito do art. 306 do CTB (na sua nova redação) possui a
natureza de perigo abstrato de perigosidade real, que é uma tese muito próxima
do perigo abstrato com potencial perigo para o bem jurídico tutelado. Só
existiria o crime citado quando houvesse superação de um determinado
risco-base.
Não
se trataria, portanto, de perigo abstrato presumido (ou puro), nem tampouco de
perigo concreto. Renato Marcão (no portal atualidadadesdodireito.com.br) opinou
no sentido de que se trata de perigo abstrato puro (presumido). A
nova redação dada ao art. 306 do CTB, pela Lei 12.760/12, é a seguinte:
“Conduzir
veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de
álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
§
1o - As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I
- concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue
ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou
II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo
Contran, alteração da capacidade psicomotora.
O
novo tipo penal, na medida em que exige “capacidade psicomotora alterada em
razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine
dependência”, claramente se distanciou dos dois modelos anteriores (de 1997
e de 2008). Criou-se uma terceira situação de ilicitude (distinta das
precedentes). Se o legislador mudou a redação da lei, agregando algo que antes
não existia, parece muito evidente que houve alteração no perigo abstrato puro
ou presumido de 2008.
Desde
logo fica evidente o seguinte: o novo tipo penal, em sua literalidade, nem
exige comprovação de dano potencial concreto “a outrem” (tal como ocorria em
1997), nem se contentou com a (mera) presunção da influência e da alteração da
capacidade psicomotora a partir de uma certa quantidade de álcool por litro de
sangue (6 decigramas). Nem uma coisa, nem outra.
Estamos
diante de um tercius, de um novo paradigma de ilícito, que exige uma
adequada e constitucional interpretação, observando-se desde logo que fato não
se presume: ou acontece ou não acontece. As duas novas exigências formais
contidas no art. 306 (alteração da capacidade psicomotora do agente e
influência do álcool ou outra substância) devem ficar devidamente comprovadas
em juízo. Isso, no entanto, não significa perigo concreto determinado (com
vítima certa).
O
que o legislador contemplou no novo art. 306 é distinto do que constava dele em
2008, porém, não deixa de ser uma forma bastante antecipada de tutela do bem
jurídico. Trata-se de um campo prévio ao perigo concreto direto, porque, nas
sociedades de risco (Risikogesellschaft), bem descritas por Ulrich Beck,
a pergunta é: “Como podem ser evitados ou minimizados ou controlados os riscos
e ameaças, coproduzidos sistematicamente nos processos de modernização?”
(Ganzenmüller et alii: 1997, p. 13).
O
desenvolvimento do direito penal, nas sociedades de risco, utiliza, cada vez
mais, a técnica do perigo abstrato (sendo incompatível com elas só o velho
sistema da lesão ao bem jurídico do direito penal liberal – Ganzenmüller et
alii: 1997, p. 15). Os delitos de perigo, hoje, constituem a mancha de óleo
de Lackner, visto que são os “filhos prediletos” do legislador (Ganzenmüller et
alii: 1997, p. 17).
Isso
foi feito no novo art. 306, porém, aí não se contemplou o chamado perigo
abstrato puro ou presumido (tal como ocorria na redação de 2008), sim, o perigo
abstrato de perigosidade real, que equivale ao perigo concreto indireto.
Se
a lesão significa uma efetiva ofensa ao bem jurídico, se o perigo concreto é
uma probabilidade de lesão, se o perigo concreto indireto (ou perigo abstrato
de perigosidade real) é uma probabilidade de perigo concreto, o perigo abstrato
puro (ou presumido) é uma mera possibilidade de perigo (1) de perigo (2) de
perigo (3) concreto. Essa tríplice incidência do perigo é inadmissível no
direito penal, porque se distancia demasiadamente do bem jurídico protegido.
Parodiando Carlos Britto diríamos tratar-se de um “salto triplo carpado
hermenêutico”.
O Direito Revisto - Fev/13
Publicado originalmente em: Carta Forense
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