Por Carlos Eduardo
Minozzo Poletto
Poderia nos
conceituar cada um dos institutos: Indignidade Sucessória e Deserdação?
O vocábulo indignidade deriva do latim indignitas, apontando a
falta de dignidade, a injúria afrontosa, o demérito. Na acepção jurídica,
entretanto, indignidade possui significado diverso, indicando uma pena privada.
No direito sucessório, a prática de ato representativo de indignidade leva o
sucessor à perda do direito hereditário. A deserdação, por sua vez, deriva do
verbo deserdar, que na terminologia comum significa exclusão ou privação da
herança. Na técnica jurídica, contudo, a palavra exprime uma realidade mais
restrita, designando a privação do direito de legítima, que consiste na porção
de bens de que o testador não pode dispor por ser legalmente destinada aos
herdeiros necessários.
Pode haver
coexistência entre as duas figuras? Quais são suas semelhanças e distinções?
Conquanto tenham o mesmo objetivo e
semelhante natureza punitiva, são figuras distintas, que possuem fundamento,
estrutura e regime próprios. O fundamento ético-jurídico da indignidade é a
proteção da ordem pública e social, tendo em vista que ela atua precipuamente
sobre comportamentos criminosos, em contraponto à deserdação, que procura proteger
e prestigiar a harmonia, o respeito e a solidariedade nas relações familiares,
abarcando geralmente ilícitos civis ou atos moralmente condenáveis. Por isso, a
indignidade corresponde a uma sanção imposta pela lei, independentemente da
vontade do autor da herança, enquanto que na deserdação se exige expressa
manifestação em testamento. Ademais, o âmbito de aplicação dos institutos é
diverso: enquanto a indignidade pode atingir todas as espécies de sucessores,
sejam herdeiros ou legatários, beneficiados por testamento ou codicilo, a
deserdação está circunscrita aos herdeiros necessários.
Quais são os
requisitos para o sucessor se tornar indigno?
São dois os requisitos: prática de ato
tipificado e declaração judicial. O relevante debate envolve a natureza do
tímido rol de condutas ensejadoras da indignidade. Cabe razão ao Professor
Leonardo Pérez Gallardo, Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito de
Havana, que publicou recente estudo sobre o direito sucessório na América
Latina, ao constatar a inércia do legislador sobre o tema mesmo quando
analisadas somente as codificações recentes, como no Brasil, na Bolívia, no
Paraguai e no Peru. E qual a resposta da doutrina e da jurisprudência para essa
pobreza atroz? Trata-se de norma restritiva de direito, que exige interpretação
restritiva, escrava ao texto legal. Resquício do arcaico e estéril pensamento
oitocentista, calcado na plenitude da lei e na ideologia da unidade
legislativa. A nosso ver, o rol apresenta uma tipicidade delimitativa, que se
situa entre a técnica taxativa e a enumeração exemplificativa, admitindo-se o
uso da analogia legis.
Essa posição não afronta a regra constitucional da legalidade, sendo que o uso
da tipicidade exemplificativa (Regelbeispiele)
é largamente adotado na legislação penal alemã, quando esta formula regras
abertas elencando uma série de hipóteses, admitindo analogia perante outro
exemplo mais gravoso, ainda que não esteja incluído expressamente no dispositivo
legal punitivo.
Qual o sucessor que
pode ser deserdado?
A deserdação, em um sentido restrito e
próprio da técnica jurídica, é o ato pelo qual o autor da herança priva um
herdeiro necessário da sua quota legitimária. Por isso o Código Civil alemão (BGB) preteriu o vocábulo
“deserdação” para adotar a rubrica Entziehung
des Pflichtteils (Privação da Legítima).
Como se resolve a
questão da sucessão dos herdeiros deserdado?
O Código de 2002 foi omisso ao definir
quais seriam os efeitos da deserdação com relação aos herdeiros do deserdado,
assim como era a codificação revogada. Antigo acórdão do STF já declarava serem
“pessoais os efeitos da indignidade da deserdação, os quais, assim, não se
estendem aos descendentes do excluído ou do deserdado”, prevalecendo o direito
de representação.
Pode nos falar como
funciona a questão do perdão e reabilitação na indignidade e deserdação?
Nossa legislação nunca acompanhou o
antigo direito francês, em que o perdão era irrelevante, de modo que “aquele
que incorreu em atos que determinem a exclusão da herança será admitido a
suceder, se o ofendido o tiver expressamente reabilitado em testamento, ou em
outro ato autêntico” (art. 1.818). No que concerne à forma, nossa lei
acostumou-se a usar a infeliz expressão “ato autêntico”, importada do Código
Civil italiano de 1865. Quanto ao perdão do deserdado, ainda que silente o
texto legal, admite-se que o autor da herança possa perdoar o herdeiro
agressor. Majoritariamente, entende-se que somente por testamento poderá o testador
perdoar o herdeiro deserdado.
Quais são as
características da ação de indignidade sucessória?
A indignidade sucessória, ao menos no
direito brasileiro, somente se opera com a específica declaração judicial na
competente demanda civil, ultimando-se, por sentença, a exclusão hereditária. O
prazo decadencial é de 04 anos, contados a partir da abertura da sucessão. Não
se admite que a ação seja proposta antes da abertura do processo hereditário. O
Código não identifica quem estaria legitimado a promover tal contenda. A
maioria das legislações impõe aos demais sucessores, mormente aqueles que irão
beneficiar-se patrimonialmente, a incumbência de demandá-lo. É também o que
prevalece por aqui, embora entendamos que o Ministério Público também está legitimado.
A indignidade constitui questão de alta indagação, não podendo ser ventilada
nos autos do inventário. A sentença de procedência possui natureza constitutiva
negativa.
Quais as
peculiaridades da ação de deserdação?
A deserdação não se ultima com a mera
imputação da conduta tipificada pelo autor da herança em testamento, pois é
indispensável a sua comprovação judicial. Em Portugal e na Suíça, por exemplo,
ela se opera automaticamente. Nesses países, a simples imputação do
comportamento tipificado e a cominação da sanção hereditária pelo autor da
herança bastam para afastar o herdeiro, que, evidentemente, poderá impugná-la
judicialmente (ação de impugnação da deserdação).
Como a questão é
vista no Direito Estrangeiro?
Essas duas figuras de exclusão sucessória
foram recepcionadas das instituições romanas, tendo elas percorrido
conjuntamente por todos os diplomas do antigo direito comum europeu. Contudo,
em 1804, no Code Napoléon,
a deserdação acabou desaparecendo do texto legal, tendo sido absorvida pela
indignidade. A primeira codificação nacional da Itália também contemplava
somente a indignidade, no que foi repetida pelo vigente Código de 1942.
Entretanto, o sistema dualista, que prevê a existência dos dois institutos, é
majoritário, como assim ocorre no Código Civil brasileiro, português, espanhol,
alemão, suíço, austríaco, dentre outros. Evidentemente, desconsideramos aqueles
que desconhecem o direito de legítima.
Qual a relação dos
dois institutos com a revogação da doação por ingratidão e da exoneração da
obrigação alimentar por procedimento indigno?
São
institutos análogos, pois consistem em penas privadas. O direito privado, assim
como o direito penal, constitui parte de um controle jurídico-social à prática
de comportamentos indesejáveis, contendo também autênticas penas,
diferenciando-se, por vezes, quanto aos bens protegidos, mas, sobretudo, em sua
consequência exclusivamente patrimonial (classicamente de caráter acessório e,
modernamente, substitutivo, na órbita penal).
O Direito Revisto – Jun/13
Publicado
originalmente em: Carta Forense
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