segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A Teoria do Domínio do Fato e a Autoria Colateral

Autor:  Cezar Roberto Bitencourt

1. Considerações preliminares
O julgamento da Ação Penal 470, popularmente conhecido como “mensalão”, pelo Supremo Tribunal Federal não apenas colocou em polvorosa toda a sociedade brasileira, como também repercute no exterior, pelo menos, no âmbito da doutrina penal internacional. Mais precisamente, o mais
importante penalista mundial no último quarto do século passado – Claus Roxin -, o grande responsável pelo desenvolvimento da teoria do domínio do fato, manifestou-se expressamente sobre referida teoria, e, mais especificamente, sobre a sua interpretação.
Embora já tenhamos escrito sobre essa temática em nosso Tratado de Direito Penal , os atuais acontecimentos recomendam que façamos um pequeno acréscimo em nosso texto, apenas para deixá-lo mais claro.
2. O conceito de autoria
O conceito de autoria, como sustentamos em nosso Tratado, pode abranger todos os intervenientes no crime, quando partimos de um sistema unitário de autor, ou pode estar limitado à conduta dos agentes principais, se partimos de um sistema diferenciador de autor. Neste tópico trataremos, especificamente, da autoria como conceito restrito, nos termos do sistema diferenciador, adotado pela Reforma Penal de 1984.
Um sistema verdadeiramente diferenciador de autor caracteriza-se, fundamentalmente, pela adoção do princípio de acessoriedade da participação, pois é através deste princípio que podemos entender a participação como uma intervenção secundária, cuja punibilidade se estabelece em função de determinados atributos da conduta do autor. Além disso, a adoção desse princípio conduz à necessidade de estabelecer critérios de distinção entre as condutas de autoria e as condutas de participação, que poderá ser analisada neste espaço restrito. O estudo específico do princípio de acessoriedade será feito mais adiante, quando trataremos da participação em sentido estrito.
A autoria dentro de um sistema diferenciador não pode circunscrever-se a quem pratica pessoal e diretamente a figura delituosa, mas deve compreender também quem se serve de outrem como “instrumento” (autoria mediata). É possível igualmente que mais de uma pessoa pratique a mesma infração penal, ignorando que colabora na ação de outrem (autoria colateral), ou então, consciente e voluntariamente, coopere no empreendimento criminoso, praticando atos de execução (coautoria). Várias teorias procuram definir o conceito do autor dentro de um sistema diferenciador.
2.1. Conceito extensivo de autor
O conceito extensivo de autor foi desenvolvido pela doutrina alemã nos anos 30 do século passado. Seu mais provável idealizador foi Leopold Zimmerl, a quem é atribuída a primeira versão sistematizada do conceito extensivo de autor, distinguindo-o do conceito restritivo de autor em função da interpretação dos tipos penais, exposta em 1929.
O conceito extensivo tem como fundamento dogmático a ideia básica da teoria da equivalência das condições, de tal forma que sob o prisma naturalístico da causalidade não se distingue a autoria da participação. Todo aquele que contribui com alguma causa para o resultado é considerado autor. Com esse ponto de partida, inclusive instigador e cúmplice seriam considerados autores, já que não se distingue a importância da contribuição causal de uns e outros. Nessa época, porém, a doutrina alemã não ignorava a existência dos preceitos legais que disciplinavam a participação no delito, deixando claro que esta deveria ser tratada diferentemente da autoria. Assim, para essa teoria, o tratamento diferenciado à participação (partícipes) deveria ser visto como constitutivo de “causas de restrição ou limitação da punibilidade”.
Objetivamente, como acabamos de afirmar, não era possível estabelecer a distinção entre autoria e participação, ante a equivalência das condições. Contudo, essa distinção deveria ser feita em face da lei, que a reconhece, estabelecendo penas diferentes para o autor, o indutor (instigador) e o cúmplice. Como solução, um setor da doutrina alemã propõe que a distinção seja fixada através de um critério subjetivo. Por isso, o conceito extensivo de autor vem unido à teoria subjetiva da participação, que seria um complemento necessário daquela. Segundo essa teoria, é autor quem realiza uma contribuição causal ao fato, seja qual for seu conteúdo, com “vontade de autor”, enquanto é partícipe quem, ao fazê-lo, possui unicamente “vontade de partícipe”. O autor quer o fato como “próprio”, age com o animus auctoris; o partícipe quer o fato como “alheio”, age com animus socii. Dessa forma, a extensão do tipo penal a todas as condutas consideradas como causa seria mitigada pelo critério subjetivo.
Os inconvenientes da distinção puramente subjetiva de autoria e participação são manifestos. Fizeram-se presentes com grande intensidade nas condenações dos nazistas na jurisprudência alemã, em que os executores de milhares de mortes foram considerados cúmplices, porque queriam os fatos como alheios. Algo semelhante poderá ocorrer com os crimes de mão própria, em que o autor do crime, por querê-lo como alheio, poderia ser condenado como cúmplice, numa verdadeira aberração. Isso implicaria, em outras palavras, condenar como meros partícipes sujeitos que realizam pessoalmente todos os elementos do tipo e, como autores, quem não tem intervenção material no fato.
Assim, tanto o conceito extensivo de autor como a teoria subjetiva da participação devem ser rechaçados.
2.2. Conceito restritivo de autor
O conceito restritivo de autor, por sua vez, tem como ponto de partida o entendimento de que nem todos os intervenientes no crime são autores. Além disso, preceitua que somente é autor quem realiza a conduta típica descrita na lei, isto é, apenas o autor (ou coautores) pratica(m) o verbo núcleo do tipo: mata, subtrai, falsifica etc. Sob essa perspectiva, os tipos penais da Parte Especial devem ser interpretados de forma restritiva, pois, ao contrário do conceito extensivo de autor, nem todo aquele que interpõe uma causa realiza o tipo penal, pois “causação não é igual a realização do delito”. As espécies de participação, instigação e cumplicidade, somente poderão ser punidas, nessa acepção, através de uma norma de extensão, como “causas de extensão da punibilidade”, visto que, por não integrarem diretamente a figura típica, constituiriam comportamentos impuníveis.
De acordo com o conceito restritivo, portanto, realizar a conduta típica é objetivamente distinto de favorecer a sua realização. Ademais, somente a conduta do autor pode ser considerada diretamente como típica, sendo necessário que o legislador especifique, normalmente na Parte Geral, se as formas de participação são, por extensão, tipicamente relevantes e puníveis. Deduz-se daí a necessidade de desenvolver critérios que identifiquem a conduta do autor, distinguindo-
-a das formas de participação acessória. Por isso o conceito restritivo de autor necessita ser complementado por uma teoria da participação. A doutrina alemã vem elaborando uma série de critérios com essa finalidade, mas faremos a menção somente daqueles que consideramos mais importantes.
a) Teoria objetivo-formal
Embora sem negar a importância do elemento causal, destaca as características exteriores do agir, isto é, a conformidade da ação com a descrição formal do tipo penal. Essa teoria atém-se à literalidade da descrição legal e define como autor aquele cujo comportamento se amolda ao círculo abrangido pela descrição típica e, como partícipe, aquele que produz qualquer outra contribuição causal ao fato.
Essa teoria teve uma grande aceitação até os anos 60 do século XX, mas foi amplamente criticada, tanto na Alemanha como na Espanha, pelo excessivo formalismo com que identificava a conduta do autor. Apesar de indicar que a autoria refere-se à realização dos elementos do tipo, não foi capaz de evidenciar que elemento material do tipo (especialmente nos delitos de resultado) identifica a conduta do autor, frente às contribuições causais constitutivas de mera participação. Além disso, criticava-se a versão clássica da teoria objetivo-formal, porque partindo de suas premissas não era possível explicar de maneira satisfatória como a conduta do coautor e do autor mediato se amoldava na descrição típica. Com efeito, estes não realizam, por si sós, todos os elementos do tipo: cada coautor realizaria somente parte da ação executiva, e o autor mediato é o instrumento de quem atua diretamente. Era necessário buscar outro critério que fosse capaz não só de identificar a conduta de autor, mas, também, de explicar as diferentes formas de autoria (direta, coautoria e autoria mediata).
b) Teoria objetivo-material
Nem sempre os tipos penais descrevem com clareza o injusto da ação, dificultando a distinção entre a autoria e participação, especialmente nos crimes de resultado. A teoria objetivo-material, através de suas inúmeras versões, procurou suprir os defeitos da formal-objetiva, considerando a maior perigosidade que deve caracterizar a contribuição do autor em comparação com a do partícipe, ou a maior relevância material da contribuição causal do autor em relação à contribuição causal do partícipe, ou ainda a maior importância objetiva da contribuição do autor em relação à contribuição do partícipe. No entanto, a desconsideração do aspecto subjetivo e a tentativa de estabelecer diferenças objetivo-materiais com base na causalidade conduziram essa teoria ao fracasso. Com efeito, a dificuldade prática de distinguir causa e condição ou mesmo de distinguir causas mais ou menos importantes levaram, finalmente, a doutrina alemã a abandonar a teoria objetivo-material e a adotar expressamente a concepção restritiva de autor, sob o critério formal-objetivo.
3. Teoria do domínio do fato
Trata-se de uma elaboração superior às teorias até então conhecidas, que distingue com clareza autor e partícipe, admitindo com facilidade a figura do autor mediato, além de possibilitar melhor compreensão da coautoria. Essa teoria surgiu em 1939 com o finalismo de Welzel e sua tese de que nos crimes dolosos é autor quem tem o controle final do fato. Mas foi através da obra de Roxin, Täterschaft und Tatherrschaft inicialmente publicada em 1963, que a teoria do domínio do fato foi desenvolvida, adquirindo uma importante projeção internacional, tanto na Europa como na América Latina. Depois de muitos anos Claus Roxin reconheceu que o que lhe preocupava eram os crimes cometidos pelo nacionalsocialismo. Na ótica, do então jovem professor alemão, “quem ocupasse uma posição dentro de um chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um crime, tem de responder como autor e não só como partícipe, ao contrário do que entendia a doutrina dominante na época.
Nem uma teoria puramente objetiva nem outra puramente subjetiva são adequadas para fundamentar a essência da autoria e fazer, ao mesmo tempo, a delimitação correta entre autoria e participação. A teoria do domínio do fato, partindo do conceito restritivo de autor, tem a pretensão de sintetizar os aspectos objetivos e subjetivos, impondo-se como uma teoria objetivo-subjetiva. Embora o domínio do fato suponha um controle final, “aspecto subjetivo”, não requer somente a finalidade, mas também uma posição objetiva que determine o efetivo domínio do fato. Autor, segundo essa teoria, é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato. Mas é indispensável que resulte demonstrado que quem detém posição de comando determinou a prática da ação, sendo irrelevante, portanto, a simples “posição hierárquica superior”, sob pena de caracterizar autêntica responsabilidade objetiva. Autor, enfim, é não só o que executa a ação típica, como também aquele que se utiliza de outrem, como instrumento, para a execução da infração penal (autoria mediata). Como ensinava Welzel, “a conformação do fato mediante a vontade de realização que dirige de forma planificada é o que transforma o autor em senhor do fato”. Porém, como afirma Jescheck, não só a vontade de realização resulta decisiva para a autoria, mas também a importância material da parte que cada interveniente assume no fato.
Recentemente, visitando o Brasil (esteve no Rio de Janeiro fazendo uma conferência), e incomodado com a interpretação, por vezes equivocada, de “sua” teoria do domínio do fato, pelo Supremo Tribunal Federal, Claus Roxin concedeu entrevista ao jornal Folha de São Paulo, e fez o seguinte esclarecimento:
“- Folha — É possível usar a teoria para fundamentar a condenação de um acusado supondo sua participação apenas pelo fato de sua posição hierárquica?
- Roxin — Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso.
- Folha — O dever de conhecer os atos de um subordinado não implica em corresponsabilidade?
- Roxin — A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção ["dever de saber"] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados”
- Folha – A opinião pública pede punições severas no mensalão. A pressão da opinião pública pode influenciar o juiz?
- Roxin – Na Alemanha temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes (g. a.). O problema é que isso não corresponde ao direito. O juiz não tem que ficar ao lado da opinião pública” (grifos do original) .
Não fosse assim estar-se-ia negando o direito penal da culpabilidade, e adotando a responsabilidade penal objetiva, aliás, proscrita do moderno direito penal no marco de um Estado Democrático de Direito, como é o caso brasileiro. Em outros termos, para que se configure o domínio do fato é necessário que o autor tenha absoluto controle sobre o executor do fato, e não apenas ostentar uma posição de superioridade ou de representatividade institucional, como se chegou a interpretar na jurisprudência brasileira. Ou, nas palavras do próprio Roxin, verbis: “Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado”. Ou seja, segundo Roxin, é insuficiente que haja indícios de sua ocorrência, aliás, como é próprio do Direito Penal do fato, que exige um juízo de certeza consubstanciado em prova incontestável. Nesse sentido, convém destacar lição elementar: a soma de indícios não os converte em prova provada, ou como se gosta de afirmar, acima de qualquer dúvida razoável. A eventual dúvida sobre a culpabilidade de alguém, por menor que seja, é fundamento idôneo para determinar sua absolvição.
A teoria do domínio do fato reconhece a figura do autor mediato, desde que a realização da figura típica, apresente-se como obra de sua vontade reitora, que é reconhecido como o “homem de trás”, e controlador do executor. A teoria do domínio do fato tem as seguintes consequências: 1ª) a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamentam sempre a autoria; 2ª) é autor quem executa o fato utilizando a outrem como instrumento (autoria mediata); 3ª) é autor o coautor que realiza uma parte necessária do plano global (“domínio funcional do fato”), embora não seja um ato típico, desde que integre a resolução delitiva comum.
O âmbito de aplicação da teoria do domínio do fato, com seu conceito restritivo de autor, limita-se aos delitos dolosos. Somente nestes se pode falar em domínio final do fato típico, pois os delitos culposos caracterizam-se exatamente pela perda desse domínio. A doutrina alemã trabalha com dois conceitos distintos de autor: nos delitos dolosos utiliza o conceito restritivo de autor fundamentado na teoria do domínio do fato, e nos delitos culposos utiliza um conceito unitário de autor, que não distingue autoria e participação. Segundo Welzel, “autor de um delito culposo é todo aquele que mediante uma ação que lesiona o grau de cuidado requerido no âmbito de relação, produz de modo não doloso um resultado típico”. A doutrina espanhola, que admite a participação em crimes culposos, em suas formas de cumplicidade e instigação, critica severamente a posição alemã, nesse particular.
 4. Autoria mediata
A doutrina consagrou a figura da autoria mediata, e algumas legislações, como a alemã (§ 25, I) e a espanhola (Código Penal de 1995, art. 28) admitem expressamente a sua existência. “É autor mediato quem realiza o tipo penal servindo-se, para execução da ação típica, de outra pessoa como instrumento” . A teoria do domí

nio do fato molda com perfeição a possibilidade da figura do autor mediato. Todo o processo de realização da figura típica, segundo essa teoria, deve apresentar-se como obra da vontade reitora do “homem de trás”, o qual deve ter absoluto controle sobre o executor do fato. Originariamente, a autoria mediata surgiu com a finalidade de preencher as lacunas que ocorriam com o emprego da teoria da acessoriedade extrema da participação . A consagração da acessoriedade limitada não eliminou, contudo, a importância da autoria mediata. Modernamente defende-se a prioridade da autoria mediata diante da participação em sentido estrito. Em muitos casos se impõe a autoria mediata, mesmo quando fosse possível, sob o ponto de vista da acessoriedade limitada, admitir a participação (caso do executor inculpável), desde que o homem de trás detenha o domínio do fato . Nessas circunstâncias, o decisivo para distinguir a natureza da responsabilidade do homem de trás reside no domínio do fato. O executor, na condição de instrumento, deve encontrar-se absolutamente subordinado em relação ao mandante.
O autor mediato realiza a ação típica através de outrem, como instrumento humano, que atua: a) em virtude da situação de erro em que se encontra, devido à falsa representação da realidade (erro de tipo), ou do significado jurídico da conduta que realiza (erro de proibição) que é provocada pelo homem de trás , b) coagido, devido à ameaça ou violência utilizada pelo homem de trás , ou c) num contexto de inimputabilidade (com a utilização de inimputáveis) . As hipóteses mais comuns de autoria mediata decorrem, portanto, do erro, da coação irresistível e do uso de inimputáveis para a prática de crimes, o que não impede a possibilidade de sua ocorrência em ações justificadas do executor, quando, por exemplo, o agente provoca deliberadamente uma situação de exclusão de criminalidade para aquele, como já referimos neste trabalho.
Todos os pressupostos necessários de punibilidade devem encontrar-se na pessoa do “homem de trás”, no autor mediato, e não no executor, autor imediato. Com base nesse argumento, Soler e Mir Puig, seguindo a orientação de Welzel, admitem, em princípio, a possibilidade de autoria mediata nos crimes especiais ou próprios, desde que o autor mediato reúna as qualidades ou condições exigidas pelo tipo . Já nos “crimes de mão própria” será impossível a figura do autor mediato . Além desses casos especiais, a autoria mediata encontra seus limites quando o executor realiza um comportamento conscientemente doloso. Aí o “homem de trás” deixa de ter o domínio do fato, compartindo-o, no máximo, com quem age imediatamente, na condição de coautor, ou então fica na condição de partícipe, quando referido domínio pertence ao consorte.
Apenas, enfim, para reflexão!

Autor: Cezar Roberto Bitencourtt
Fonte:  https://www.facebook.com/cezarroberto.bitencourt?ref=ts&fref=ts
Imagem: idem fonte

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