Por Daniel Mitidiero
Por favor, nos conceitue o que é a Antecipação da Tutela.
A antecipação da tutela é uma técnica processual que visa a distribuir de forma isonômica o ônus do tempo no processo, permitindo a sua adequação a partir da urgência em prover ou da evidência do direito postulado em juízo. Como técnica, constitui um meio para prestação da tutela jurisdicional dos direitos.
Quais são os pontos distintos e comuns à tutela cautelar?
Tradicionalmente, a doutrina brasileira e
estrangeira tende a teorizar a antecipação de tutela e a tutela
cautelar lado a lado, como se fossem espécies de um mesmo gênero
(tutelas de urgência). É a partir daí que normalmente são traçadas as
diferenças e os pontos de contato entre os dois institutos. Na minha
opinião esse modo de pensar tem dois problemas: em primeiro lugar,
eclipsa a influência do direito material na estruturação do processo; em
segundo, deixa de lado a real função da antecipação da tutela, que é
promover a igualdade entre os litigantes a fim de que o processo possa
prestar uma tutela adequada, efetiva e tempestiva à parte. Foi por essa
razão que resolvi escrever meu livro mais recente sobre o tema – para
reelaborar essa difícil temática. Partindo do pressuposto de que a
antecipação de tutela é uma técnica processual que visa à prestação da
tutela jurisdicional do direito, a relação que se estabelece entre
técnica antecipatória e tutela do direito é uma relação de meio e fim. A
técnica antecipatória é um meio de sumarizar o conhecimento da causa no
processo para prestação da tutela do direito de forma provisória, seja
para satisfazer desde logo o direito (tutela satisfativa), seja para
acautelá-lo para realização futura (tutela cautelar). Para chegar a essa conclusão, eu conjugo critérios estruturais, funcionais e cronológicos
para definição da técnica antecipatória. Há uma relação de meio e fim
entre técnica antecipatória e tutela jurisdicional do direito .
A antecipação de tutela está subordinada à “verossimilhança sob prova inequívoca” (art. 273, caput, CPC). Essa é uma locução que é muito criticada na doutrina brasileira. Essas críticas procedem no seu entendimento?
De um modo geral, a doutrina aponta certa
incompatibilidade entre os termos “verossimilhança” e “prova
inequívoca” – se a prova é inequívoca, então o direito não seria
simplesmente verossímil, mas efetivamente existente. Essa crítica, com
todo respeito, me parece improcedente. Ela pressupõe, como pando de
fundo, uma ligação ontológica entre prova e verdade, quando é sabido que essa relação é puramente teleológica.
Isso não quer dizer, contudo, que eu esteja de acordo com a expressão
utilizada pelo legislador. É clássica a compreensão do termo
“verossimilhança” com dois sentidos distintos. Para Calamandrei, o termo
significa tanto aquilo que normalmente acontece (id quod plerumque accidit) como um grau de aproximação à realidade. Isso se deve, no entanto, à incompleta tradução que Calamandrei realizou do termo alemão Wahrscheinlichkeit
empregado por Wach em uma de suas conferências sobre a ZPO alemã de
1877. É verdade que, em alemão, a expressão significa tanto normalidade como probabilidade.
Ocorre que, no português, temos duas expressões diferentes para
designar esses dois conceitos distintos. Assim, o conceito de
verossimilhança não indica um grau de aproximação à verdade, mas
simplesmente um padrão de normalidade. O conceito que indica um grau de
aproximação à verdade é o de probabilidade, que deveria, portanto, ser o
conceito utilizado pelo legislador para concessão da antecipação da
tutela. Como o processo justo visa à prolação de uma decisão justa, e
inexiste possibilidade de uma decisão justa divorciada da busca pela
verdade das alegações de fato, é adequada a utilização do conceito de probabilidade para estruturação do regime jurídica da técnica antecipatória.
E o problema da alusão à “prova inequívoca”?
A referência que o legislador faz à prova
inequívoca não é das mais felizes, embora tenha o mérito de sugerir que
o problema ligado à formação do juízo de probabilidade é, na maioria
dos casos, um problema probatório. E isso porque a probabilidade lógica (que é a probabilidade própria ao direito e ao processo) é alcançada mediante testes de corroboração e não refutação
das hipóteses à luz do conjunto probatório. Muito resumidamente, para
que uma assertiva seja provável, ela deve ser suportada e não desmentida
pelas provas disponíveis nos autos. O grau de convencimento que se
exige para antecipação de tutela, contudo, variará de acordo com o
direito material postulado em juízo. Por isso que a alusão à “prova
inequívoca”, se lida como um conceito uniforme e homogêneo, acaba
despistando o que realmente interessa para concessão da antecipação da
tutela – a formação de um juízo de probabilidade consistente à luz da
prova dos autos e do direito material debatido em juízo. O adjetivo
“inequívoca” sugere uma ligação ontológica entre prova e verdade (“se
está provado, é verdadeiro”), quando é sabido que essa maneira de
compreender o tema está superada por uma percepção apenas teleológica
dessa ligação (“a prova visa à verdade, mas não a constitui”). Daí a
razão pela qual é preciso ler a alusão à “prova inequívoca” como
exigência de conforto das alegações fático-jurídicas nas provas
disponíveis nos autos.
E a questão concernente à
subordinação do “perigo de dano irreparável ou de difícil reparação”
para concessão da antecipação de tutela?
Esse é outro equívoco da legislação
brasileira na minha opinião. A antecipação da tutela fundada na urgência
tem por pressuposto a demonstração do perigo na demora (“pericolo di tardività”,
como dizem os nossos colegas italianos) e não a demonstração de perigo
de dano irreparável ou de difícil reparação. E isso por uma razão muito
simples. Se a antecipação de tutela é uma técnica processual que visa à
viabilização da tutela jurisdicional do direito e caracteriza-se por
realizar ou acautelar provisoriamente um direito antes da prolação de uma decisão definitiva
sobre a questão, então o que realmente interessa é saber se é possível
esperar ou não pela tutela final. “Dano irreparável ou de difícil
reparação”, como é óbvio, constitui expressão do direito material e está
ligada tão-somente à tutela contra o dano. Se ato ilícito não se
confunde com fato danoso, então é pouco mais do que evidente que é
preciso conceber a antecipação de tutela a partir de um conceito processual suficientemente elástico
para concessão tanto de uma tutela contra o dano (tutela reparatória ou
tutela ressarcitória, por exemplo) como de uma tutela contra o ilícito
(tutela inibitória, por exemplo). Não faz sentido exigir alegação e
prova do dano se o demandante quer apenas uma tutela contra o ilícito.
Daí que a antecipação da tutela está subordinada não à alegação de “dano
irreparável ou de difícil reparação”, mas à alegação de “perigo na
demora”, que pode ser evidenciado pelo receio de prática, reiteração ou
continuação de um ato ilícito (tutela inibitória), pela necessidade de
remoção imediata dos efeitos de um ilícito já praticado (tutela de
remoção do ilícito), pela necessidade de segurança contra o um dano
irreparável ou de difícil reparação (tutela cautelar) ou pela
necessidade de imediata neutralização do dano na forma específica ou
pelo equivalente monetário (tutela reparatória ou tutela ressarcitória).
A técnica antecipatória serve
para equacionar o ônus do tempo no processo diante da urgência em prover
e da evidência do direito postulado em juízo. É possível deixar mais
clara essa última hipótese?
A doutrina e a jurisprudência de um modo
geral enxergam a antecipação de tutela como algo somente ligado à
urgência. Essa indevida restrição certamente decorre da sua gênese no
âmbito da tutela cautelar. Mas o fato é que a antecipação de tutela pode
ser motivada em duas situações distintas: quando não há tempo a perder (urgência) ou quando é inútil perder tempo
(evidência). Na comparação entre os sistemas jurídicos, o direito
brasileiro e o direito francês (em que essa divisão teve início com as ordonnances de référé)
destacam-se por preverem a possibilidade de tutela sumária em ambas as
hipóteses. O direito alemão, espanhol, estadunidense, inglês, italiano e
português – para ficarmos apenas com alguns exemplos – limitam a tutela
sumária ao âmbito da urgência. No Brasil, é possível obter tutela
sumária sempre que a defesa do réu seja “inconsistente” (abuso do
direito de defesa e manifesto propósito protelatório, no fundo,
significa que a resistência é inconsistente). Isso pode decorrer, por
exemplo, da resistência do demandado à realização de um direito já
reconhecido em precedente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal ou da necessidade.
Por fim, para arrematar, qual a importância da antecipação de tutela no direito brasileiro?
A antecipação de tutela é um instituto de
fundamental importância. Se ter um direito é ter uma posição
juridicamente tutelável, então a previsão de técnicas processuais
idôneas para sua realização em juízo constitui condição inafastável para
vigência do império do Direito entre nós. Sem antecipação de tutela
dificilmente o direito poderia ser visto como algo distinto de uma
proclamação abstrata e vazia de significado prático – e, portanto, como
algo que carece de significado para a vida das pessoas que depositam no
Direito a fé em uma sociedade confiável dotada de uma ordem jurídica
justa.
O Direito Revisto - Fev/13
http://www.cartaforense.com.br/conteudo/entrevistas/antecipacao-da-tutela/10368
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