Muitas
vezes, o agente comete um crime laborando em erro sobre a pessoa que desejava
atingir. Em algumas situações, por falha na execução do procedimento típico,
ofende pessoa diferente da que pretendia. Outras vezes, obtém, por acidente ou
erro na execução, um resultado diferente do que desejava.
São três
modalidades de erro que, diferentemente do que acontece no erro de tipo – que
exclui o dolo, permitindo a punição por crime culposo, se tipificado – e no
erro de proibição – que exclui a culpabilidade, se inevitável, ou a diminui, se
evitável –, não isentam o agente de pena,
porquanto não são erros essenciais, mas puramente acidentais.
Nos três
casos, o agente culpado será punido, com observância de regras específicas,
como se vê a seguir.
Erro sobre a pessoa
Dispõe o
§ 3º do art. 20: “O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado
não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades
da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.”
Como se sabe, um tipo é “matar alguém”, outro,
“ofender a integridade corporal de outrem”, vale dizer, a pessoa humana pode
ser sujeito passivo de vários crimes. Se alguém quer matar Paulo e mata João,
não poderá ser desculpado, porque o crime é matar alguém, e não “matar Paulo”
e, nesse caso, terá o agente realizado o tipo de homicídio doloso, mesmo quando
sua vontade era dirigida para a morte de outra pessoa e não para a morte da
pessoa efetivamente atingida.
Ocorre o chamado erro sobre a pessoa quando o
agente, desejando matar certa pessoa, erra sobre sua identidade, sua
identificação. Tal erro decorre de falsa representação da realidade, e não de
falha na execução.
Exemplo: Cláudio, querendo matar Sálvio, mata
Sílvio, por estar escuro e não ter observado que Sílvio era muito parecido com
a vítima que desejava matar, aliás, seu irmão-gêmeo. Não se trata de erro na
execução.
Conquanto o dolo, segundo Welzel,
abrange o fim pretendido, os meios escolhidos, e os efeitos secundários, não
podia o Direito deixar de levar em conta a hipótese desse erro. Manda o § 3º do
art. 20 do Código Penal que o agente responda penalmente como se tivesse
praticado o crime contra a pessoa que desejava atingir, e não contra a que,
efetivamente, atingiu. Assim, se alguém, querendo matar o próprio pai, mata,
todavia, o tio, irmão-gêmeo do pai, responderá como se tivesse matado o pai, o
que importará na incidência da circunstância agravante do art. 61, II, e,
do Código Penal.
Todavia, se desejando matar um estranho, vem, pelo
erro, atingir e matar o pai, a agravante não incidirá.
Aberratio ictus
O erro na execução está assim definido no art. 73
do Código Penal: “Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução,
o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa
diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se
ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a
pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste
Código.”
Esta modalidade de erro não decorre de falsa
representação do agente, mas de acidente ou ineficiente utilização dos meios de
execução do procedimento típico.
Por exemplo: Ciro está com a arma apontada em
direção a Juarez, a quem pretende matar, e no momento em que dispara a arma,
Sebastião atravessa a linha de tiro e recebe o projétil, morrendo em
conseqüência do ferimento.
O erro na execução do homicídio pretendido contra
Juarez decorreu de um acidente, que foi a colocação de Sebastião no espaço por
onde a bala passava. Haverá erro na execução também quando, utilizando uma arma
defeituosa, dispara o agente contra a vítima pretendida, desviando-se o projétil
do alvo e atingindo a pessoa que se encontrava próxima. O mesmo ocorre quando o
agente erra o alvo, por sua imperícia no manejo de arma de fogo.
São duas as espécies de aberratio ictus:
aquele com resultado único e o que produz mais de um resultado.
Aberratio ictus com resultado único
Com resultado único é o que acontece na seguinte
situação: Fábio, desejando matar a Celso, dispara contra o mesmo, atingindo e
matando Arlindo, que se encontrava nas proximidades de seu desafeto, que nada
sofreu. Rigorosamente falando, teria havido uma tentativa de homicídio, contra
Celso – não consumado por circunstâncias alheias à vontade do agente –, e um
homicídio culposo contra Arlindo, pois que Fábio não tinha vontade de matá-lo,
mas, negligentemente, causou-se a previsível e evitável morte.
A solução que o direito dá, todavia, não é essa,
mas a de considerar a existência de um único homicídio doloso. Ou seja, o
agente responderá como se tivesse praticado um só homicídio doloso contra
Celso, e não o homicídio realmente ocorrido contra Arlindo, que, aliás, não foi
doloso, mas culposo.
Essa solução decorre da vontade da lei de que o
agente responda “como se tivesse praticado o crime” contra quem pretendia
praticar. Considera a lei o dolo do agente – vontade de matar – e o resultado
“morte” alcançado, embora esta tenha sido de pessoa diversa, construindo assim
uma ficção jurídica.
Esta solução, inegavelmente, é prejudicial ao
agente, pois, se se aplicasse a regra do concurso material para os fatos
realmente ocorridos, receberia ele pena por uma tentativa de homicídio (com
diminuição máxima no homicídio simples: dois anos) somada com outra por
homicídio culposo (mínima: um ano), inferior à pena de um só homicídio
consumado (mínima: seis anos).
Outro exemplo: se, desejando matar a Silas, Arnaldo
dispara e acerta Nelson, produzindo-lhe lesões corporais, haveria na realidade
uma tentativa de homicídio contra Silas e um crime de lesões corporais
culposas, mas a solução que a lei manda adotar é outra: responderá Arnaldo
puramente por uma tentativa de homicídio, que, nesse caso, absorverá as lesões
culposas. Como o resultado morte desejado não ocorreu, não seria justo que se
considerasse consumado o crime, em face de que não ocorreu a morte da vítima
efetiva. Vale repetir, deve-se considerar como praticado o crime contra a
pessoa pretendida, não contra a atingida.
Aberratio ictus com resultado duplo
Aberratio ictus com resultado duplo ocorre quando, além da pessoa
visada, é atingida outra pessoa. Juvenal, querendo matar a Paulo, atira e, além
de atingi-lo, atinge também Mauro. Manda a parte final do art. 73 que, nesse
caso, se deve aplicar a regra do art. 70, que define o concurso formal de
crimes. Podem ocorrer as seguintes situações e soluções:
a) Paulo é morto e Mauro também.
b) Paulo é morto e Mauro sofre lesões corporais.
c) Paulo sofre lesões corporais e Mauro é morto.
d) Paulo sofre lesões corporais e Mauro também.
No primeiro caso (a), em que ocorrem a morte
desejada de Paulo e a morte indesejada de Mauro, forma-se um concurso formal,
entre um homicídio doloso e um culposo,
devendo Juvenal responder por um homicídio doloso, com pena aumentada de
um sexto até metade.
No segundo caso (b), em que acontecem a morte
pretendida de Paulo e lesões corporais involuntárias em Mauro, terá havido
concurso formal entre um homicídio consumado e um crime de lesões corporais
culposas, com o aumento da pena do homicídio doloso, de um sexto até metade.
No terceiro caso (c), a solução será considerar o
homicídio como se tivesse sido consumado contra a vítima pretendida, Paulo,
embora este só se tenha ferido, em atenção ao preceituado na primeira parte do
art. 73, devendo Juvenal receber a pena por homicídio consumado, aumentada,
todavia, de um sexto até metade, em obediência à determinação da parte final do
art. 73, que manda aplicar a regra do concurso formal.
No último caso (d), com uma tentativa de homicídio
contra Paulo e uma lesão corporal culposa contra Mauro, novo concurso formal,
devendo Juvenal receber a pena pela tentativa de homicídio, aumentada de um
sexto até metade.
Apesar de não haver regra expressa, vale a
observação do parágrafo único do art. 70, segundo a qual a pena não pode
exceder a pena pertinente, caso fosse aplicada a regra do concurso material.
Em todos esses casos, é de ver que, no segundo
resultado, a morte ou a lesão da pessoa que o agente não desejava atingir
decorre de sua negligência, configurando, assim, crime culposo. Por isso, a
solução correta é compreender os dois crimes como formando um concurso formal,
pois que, mediante uma só ação, lato sensu, realizam-se, todavia, dois
crimes.
É claro que, em qualquer dessas hipóteses, se o
agente tiver previsto o outro resultado – matar ou ferir Mauro – e, em face
desse previsível resultado, tiver se portado com atitude interna de aceitá-lo,
estarão presentes desígnios autônomos, impondo-se, de conseqüência, a aplicação
da pena cumulativamente, pela regra do concurso material, segundo determina o
art. 70, última parte. A aceitação do resultado não desejado constitui outro
desígnio.
Aberratio delicti
Essa modalidade de erro na execução do procedimento
típico, também chamada aberratio criminis, encontra-se regulada pelo
art. 74 do Código Penal, assim: “Fora dos casos do artigo anterior, quando,
por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do
pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime
culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70
deste Código.”
No erro anterior, aberratio ictus, o
processo de execução se desvia de uma pessoa para outra de tal modo que, apesar
de possibilitar a ocorrência de um crime, em lugar de outro, ambos tinham como
objeto a pessoa humana, ainda que num caso sua integridade física, e noutro a
própria vida. Em vez de homicídio contra Tiago, cometia-se lesão corporal
contra Mateus, ou vice-versa. Enfim, no aberratio ictus é persona in
personam.
No aberratio delicti, o desvio na execução
alcança o bem jurídico e, em vez de uma lesão corporal, realiza o agente um
crime de dano. Em vez de atingir uma pessoa, atinge uma coisa material ou, ao
contrário, em vez de atacar o objeto, o agente fere ou mata uma pessoa.
Pode ocorrer que:
a) Ibrahim, desejando quebrar os vidros de uma
casa, atira uma pedra em direção a ela, vindo a atingir a pessoa de Miguel, que
estava próximo. Quis cometer o crime de dano, e realizou uma lesão corporal
culposa. Responderá por lesão corporal culposa. Se tivesse matado a Miguel,
responderia por homicídio culposo.
b) Ibrahim, desejando matar a Miguel, erra e atinge
a vidraça da casa. Não há crime de dano em sua modalidade culposa; por isso,
não responderá por nenhum crime em relação à coisa atingida. Apenas estará,
civilmente, obrigado a reparar o dano. Conquanto queria matar a Miguel,
responderá por tentativa de homicídio. Se sua intenção fosse apenas a de ferir
a Miguel, responderia apenas por tentativa de lesão corporal. Se o tivesse
atingido, por lesão corporal consumada.
c) Ibrahim, querendo danificar a vidraça da casa do
vizinho, atira uma pedra contra ela, vindo a acertá-la e, também, o rosto de
Maria, produzindo-lhe lesões corporais. Nesse caso, há um concurso formal de
crimes, entre um crime de dano, doloso, e um crime de lesão corporal culposa.
Aplicar-se-á a pena do crime mais grave, aumentada de um sexto até metade.
A regra só poderia ser, mesmo, a adotada pelo
Código, posto que, efetivamente, o agente não deseja o outro resultado e, é
óbvio, age negligentemente com relação ao bem que não deseja atingir. Se,
todavia, ficar evidenciado que o resultado diverso do pretendido decorreu pura
e simplesmente de nexo causal, sem qualquer negligência, imprudência ou imperícia
do agente, ou, ainda, numa situação absolutamente imprevisível – um caso
fortuito –, não terá havido culpa, em sentido estrito, não respondendo o agente
pelo resultado diverso do pretendido.
Se o agente tiver agido, com relação ao outro
resultado com dolo eventual – prevendo e aceitando o outro resultado –,
dever-se-á aplicar a regra do concurso material de crimes, porquanto os crimes
terão decorrido de desígnios autônomos (art. 70, caput, parte final).
O Direito Revisto - Mar/13
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