Por Prof. Vladimir Aras
Considerada por grande parte da doutrina como um
marco no direito penal-processual brasileiro, a Lei Federal n. 9.099/95, que
criou os Juizados Especiais Criminais, realmente introduziu um novo paradigma
na ordem jurídico-penal nacional: o da justiça criminal consensual.
Com efeito, a sanção da Lei dos Juizados Especiais,
cujo anteprojeto é produto do esforço de renomados juristas pátrios,
representou uma mudança sem precedentes no cenário penal-processual, sem
olvidar a importância dos seus efeitos e objetivos processuais civis e de
natureza cível material.
Fruto da feliz previsão constitucional do artigo
98, inciso I, da Constituição de 1988, os Juizados Especiais Criminais foram
criados com competência para a "conciliação, o julgamento e a execução de
causas cíveis de menor complexidade" e, o que ora nos interessa, de
"infrações penais de menor potencial ofensivo".
No citado dispositivo constitucional introduziu-se
conceito novo na cena criminal: o de infrações penais de menor potencial
ofensivo, que alguns autores assemelham à noção de delitos bagatelares,
enquanto outros doutrinadores os distinguem por considerar que os crimes
bagatelares reclamam tão-somente a aplicação do princípio da insignificância.
Além de estabelecer nova espécie conceitual no
campo penal, que só veio a ser conceituada pela Lei n. 9.099/95, o constituinte
de 1987 permitiu, às expressas, a transação penal na forma da lei, preconizando
a utilização do procedimento oral e sumariíssimo e permitindo, em mais uma
inovação, o julgamento dos recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
O objetivo não declarado, mas implícito, da norma
constitucional foi o de propiciar uma justiça criminal mais ágil e mais
adequada à conjuntura social em um Estado democrático, simplificando
procedimentos e impedindo a estigmatização do acusado pelo processo penal, que
tem em si as suas próprias agruras.
Concretizando o art. 98, I, da CF/88, veio a lume
em 1995 a Lei dos Juizados Especiais, que no seu artigo 62 anuncia alguns de
seus princípios, tais como a oralidade, a informalidade, a celeridade,
buscando, em mais uma "novidade" no sistema penal, assegurar a
reparação dos danos materiais e morais sofridos pela vítima, quase sempre
esquecida até então, salvo no tocante à previsão da ação civil ex delicto
no CPP e à permissão de atuação como assistente de acusação nas ações penais.
No mesmo art. 62 da Lei n. 9.099/95, propugna-se
pela aplicação, sempre que possível, de pena não privativa de liberdade. Vale
dizer, em lugar da prisão simples, da detenção ou da reclusão, devia-se a
partir dali privilegiar sanções criminais que não limitassem drasticamente o ius
libertatis do suspeito ou indiciado, que, no regime da Lei, passou a ser
chamado de "autor do fato", em respeito ao dogma constitucional da
presunção de inocência.
Essa opção pela descarcerização acompanhada de
objetivo despenalizador são traços marcantes da nova justiça penal pactuada
brasileira, inspirada em certa medida em institutos do direito norte-americano,
como a plea bargaining, mas não de todo assemelhada.
Foi da experiência do direito comparado e da
inventividade dos juristas nacionais que surgiu o instituto da transação penal
como veículo fundamental para a consecução dos objetivos da Lei n. 9.099/95 e
do art. 98, inciso I, da CF, no sentido da intervenção necessária (ou mínima)
do direito criminal. Para entender a transação penal, contudo, é necessário
averiguar o conceito das infrações penais de menor potencial ofensivo, que, na
escala de gravidade das ofensas penais, estão no pólo oposto aos crimes
hediondos. Interessante notar que, se, de um lado, a Lei n. 8.072/90 reflete
uma espécie de discurso penal, que pode ser chamado de Direito Penal do Terror
ou Direito Penal Midiático — parecendo querer solucionar a problemática penal
somente com sanções mais severas ou legitimando a vingança privada —, do outro
lado, surge a Lei dos Juizados Especiais Criminais mais afeiçoada ao discurso
da intervenção mínima e ao garantismo penal, do qual Ferrajoli é uma das vozes
altissonantes.
Retomando o fio condutor, vemos no artigo 61 da Lei
n. 9.099/95 que infrações de menor potencial ofensivo são todas as contravenções
penais (previstas ou não no Decreto-lei n. 3.688/41) e os crimes a que a lei
comine pena máxima não superior a um ano de prisão (detenção ou reclusão),
desde que tais crimes não se sujeitem a procedimento especial.
Este era o conceito de infrações penais de menor
potencial ofensivo quando da edição da Lei de 1995 e assim permaneceram as
coisas até a sanção da Lei Federal n. 10.259/2001, vigente a partir de janeiro
de 2002. E aqui é preciso abrir um parêntese para aclarar o conceito atual de
tais infrações, hoje alterado por força do art. 2º, parágrafo único, da Lei
10.259/2001, que instituiu os Juizados Criminais Federais, em razão da inserção
de parágrafo único ao art. 98 da CF, realizada pela Emenda Constitucional n.
22, de março de 1999.
A digressão é importante porque tem predominado na
doutrina a idéia de que a partir da Lei dos Juizados Federais houve ampliação
do conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo. Agora, além das
contravenções (como antes), qualquer crime apenado com até dois anos de prisão
(e não mais até um ano) será considerado infração penal de menor potencial
ofensivo, independentemente de a lei prever procedimento especial. Esta é a
opinião de Damásio de Jesus, Luiz Flávio Gomes, César Bittencourt, Mauro
Leonardo, Fernando Capez e de muitos outros doutrinadores, que entendem que o
conceito de infração de menor potencial ofensivo federal também valeria para os
Juizados Estaduais.
Todavia, há posições contrárias à ampliação do
conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo, fundada na idéia de
que o art. 2º, único, da Lei n. 10.259/2001 deve ser declarado
inconstitucional, por não poderem os tribunais atuarem como legisladores
positivos. As opiniões favoráveis a predita ampliação conceitual ainda não
foram acolhidas pacificamente e de forma predominante pela jurisprudência
nacional.
O fundamento da tese extensiva, ao nosso ver, está
em atender-se ao príncipio da isonomia, ao critério filosófico da identidade e
ao princípio federativo, sem olvidar a possibilidade, sempre útil, de
proceder-se a interpretação conforme à Constituição. Os que se opõem à extensão
argumentam ainda que a Lei 10.259 de 2001 é especial em relação à Lei n.
9.099/95, por tratar aquela de crimes federais, não se podendo aplicar o
conceito do artigo 2º, parágrafo único, da Lei n. 10.259/2001 à Justiça dos
Estados.
O tema ainda não foi pacificado seja no STF ou nos
tribunais e turmas recursais estaduais, havendo franca margem de vantagem à
tese ampliativa, tendo em conta os absurdos que poderiam advir da distinção de
infrações de menor potencial ofensivo estaduais (até um ano) e federais (até
dois anos). Ora, uma pessoa acusada de desacato (art. 331 do CP), apenada com
detenção de 6 meses a 2 anos, ficaria sujeita a ação penal comum e até a prisão
em flagrante se a vítima mediata for um policial estadual. Não teria o acusado
direito aos benefícios e institutos da Lei dos Juizados Criminais entre eles a
transação penal. Todavia, se a ofensa consistente em desacato for contra
policial federal, aí então incidiriam os dispositivos da Lei n. 9.099/95. A
solução assim posta é ilógica e ofende o senso de identidade ontológica do
instituto, além de estabelecer regras penais diversas, sem razão jurídica, para
bens jurídicos dos Estados-membros e da União.
Finda a digressão, essencial como vimos, passamos a
encarar o instituto da transação em si. Por primeiro, é preciso assinalar que a
transação penal não se confunde com o instituto homônimo do direito civil, mas
tem com ele certas afinidades, a exemplo da bilateralidade, da liberdade de
transacionar ou não e da existência de concessões recíprocas.
A transação penal, considerada pelo legislador nos
arts. 72 e 76 da Lei n. 9.099/95, tanto se aplica aos delitos submetidos aos
Juizados Federais quanto aos sujeitos à competência dos Juizados Estaduais. Um
traço lhe é importante: a existência de proposta do Ministério Público. Não se
concebe uma transação, essencialmente bilateral, sem a participação do órgão do
Ministério Público, que é titular privativo da ação penal (art. 129, I, CF).
Durante algum tempo, ouviu-se falar em transações ex officio, de
iniciativa de juízes ou mediante provocação da defesa, sem ouvida do Ministério
Público. No entanto, o STF, tanto para a transação penal quanto para a
suspensão condicional do processo, vem declarando que as propostas são
exclusivas do Parquet, e não direitos públicos subjetivos dos acusados.
Isto é lógico, bastando que se perceba que a
transação penal e o sursis processual interferem sobre a instauração e o
andamento da ação penal pública, respectivamente, com reflexo sobre a condição
de dominus litis do Ministério Público quando concedidas de ofício pelo
juiz. De outra parte, os dois institutos são de natureza consensual, não se
coadunando com a unilateralidade ou com o alijamento do MP, representante da
sociedade.
Assim, assentou-se que o autor do fato tem direito
à manifestação fundamentada do MP, propondo ou não a transação. Se esta não for
proposta, não é dado ao juiz substituir-se ao Ministério Público. Cabe-lhe aplicar
analogicamente o art. 28 do CPP, se achar pertinente e possível a transação
penal, encaminhando os autos do termo circunstanciado ou do inquérito policial
ao Procurador-Geral do MPF ou do MPE, ou, se for o caso, aos órgãos colegiados
encarregados da revisão das promoções de arquivamento de inquéritos policiais.
Portanto, recebido o termo circunstanciado no
Juizado Especial, o juiz designa a audiência preliminar do art. 72 da Lei n.
9.099/95, quando se tenta a composição civil dos danos sofridos pela vítima. Se
esta não ocorre ou não é juridicamente possível, é que se abre ensejo à oferta
da transação penal pelo Ministério Público. Havendo a composição na ação penal
pública condicionada ou na ação penal privada, a homologação do acordo civil
acarreta a renúncia ao direito de representação ou de queixa, respectivamente,
e leva à extinção da punibilidade do autor do fato, não se dando ensejo à
transação penal.
Mas se o crime ou a contravenção (estas sempre de
competência estadual, à luz do art. 109, inciso IV, da CF) forem de ação penal
pública incondicionada, ou ainda se a ação for condicionada e tiver havido
representação (por não ter sido alcançada ou desejada a composição civil), o
Ministério Público poderá propor a transação penal. Antes, porém, deverá
observar se o caso não é de arquivamento direto do termo ou do inquérito por
prescrição, por exemplo, pois então não será possível a transação penal nem a
ação penal.
É controvertida a possibilidade de o ofendido
oferecer transação na ação penal privada, uns entendendo pela impossibilidade,
pela natureza especial deste tipo de ação, e outros defendendo a tese da plena
aplicabilidade do instituto, por ser favorável ao réu (rectius: autor do
fato).
Como for, a transação só será possível se forem
atendidos os requisitos do art. 76, §2º, da Lei n. 9.099/95. Feita a proposta,
ela é submetida à aceitação bilateral pelo autor do fato e pela defesa técnica.
Se aceita por ambos, o juiz verificará se estão presentes os seus requisitos
objetivos e subjetivos e aplicará a pena não privativa de liberdade
discriminada na proposta. Em situação alguma poderá ser transacionada pena
privativa de liberdade. A aceitação é benéfica para o autor do fato, pois não
haverá anotação para efeito de reincidência. O registro da transação impede
apenas nova transação em até cinco anos. Além disso, a aceitação não permite a
execução civil da sentença para efeito reparação de dano. À vítima permanece
aberta a via da ação civil ex delicto do CPP.
Da sentença que homologar a transação penal cabe
apelação à turma recursal estadual ou federal no prazo de dez dias, ao passo
que da decisão que a rejeitar cabe mandado de segurança pelo Ministério Público
e habeas corpus pelo autor do fato, ou ainda correição parcial, conforme
o caso.
Como instituto despenalizador e descarcerizador,
que se presta mesmo a evitar o processo penal, só iniciado com a denúncia, a
transação penal é inovação fundamental na ordem jurídica de um Estado que se
declara democrático, pois possibilita realizar os princípios da intervenção
necessária (minina non curat praetor), evitando seguir-se a carcomida
máxima nec delicta maneant impunita, tão cara aos Estados totalitários.
A CF/88, constitucionalizando vários princípios
processuais penais, afeiçoou-se a uma postura garantista dos direitos humanos,
inclusive no que pertine aos direitos judiciais dos acusados, tão bem
delineados no art. 8º da Convenção da Costa Rica (Pacto de São José), tornando
factível implementar uma política criminal em que o direito penal é a ultima
ratio.
ARAS,
Vladimir. Transação penal nos Juizados Especiais Criminais. Jus Navigandi,
Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/3361>.
Acesso em: 19 abr. 2013.
O Direito Revisto – Abr/13
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