Por Leandro Caletti[i]
No penúltimo dia do ano de
2014, a Exma. Sra. Presidente da República adotou, com força de leis, as medidas
provisórias (MPV) n. 664 e 665, as quais, nos dizeres de suas próprias
exposições de motivos, respectivamente, “realizam ajustes necessários nos
benefícios da pensão por morte e auxílio-doença no âmbito do Regime Geral de
Previdência Social (RGPS)” e “modernizam as políticas públicas de emprego
financiadas pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para que este se torne
cada vez mais efetivo no que se refere à preservação do emprego e à orientação,
recolocação e qualificação profissional dos trabalhadores desempregados”.
Este sucinto estudo abordará
apenas as perniciosas alterações envolvendo a área juslaboral, articuladas na
MPV 665, relegando a análise das não menos predatórias alterações
previdenciárias (MPV 664) a quem possui conhecimento estrito da área (a título
ilustrativo, artigos dos professores Dr. Lásaro Cândido da Cunha http://www.conjur.com.br/2015-jan-27/lasaro-cunha-mp-664-parece-nao-tido-atuacao-especialistas e Fábio Zambitte Ibrahim http://www.conjur.com.br/2015-jan-07/fabio-zambitte-reforma-previdenciaria-inicia).
No concreto, em síntese
apertada e no dizer da agência de notícias do Senado Federal (http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/12/31/medida-provisoria-endurece-regras-do-seguro-desemprego), a MPV 665 “aumenta o rigor para a concessão do
abono salarial, do seguro-desemprego e do seguro-defeso dos pescadores
artesanais. Em relação ao seguro-desemprego, atualmente o trabalhador pode
solicitar o seguro após trabalhar seis meses. Com as novas regras, ele terá que
comprovar vínculo com o empregador por pelo menos 18 meses na primeira vez em
que requerer o benefício. Na segunda solicitação, o período de carência será 12
meses. A partir do terceiro pedido, a carência voltará a ser de 6 meses”.
A temática da concessão do
seguro-desemprego do pescador artesanal, conhecido como seguro-defeso, também
foi objeto de alteração prejudicial pela predita MPV, que passou a proibir o
acúmulo de benefícios assistenciais e previdenciários com o seguro. O benefício
de um salário mínimo é pago aos pescadores que exercem a atividade de forma
exclusiva durante o período em que a pesca é proibida.
Agora, para fazer jus ao
benefício, o pescador deverá comprovar uma carência de três anos a partir da
obtenção do registro de pescador, carência essa que, antes da MPV 665, era de
um ano. O beneficiário também terá que ter contribuído pelo período mínimo de
um ano para a Previdência Social.
Não bastassem tais
modificações, a concessão do seguro-defeso não será extensível às atividades de
apoio à pesca, nem aos familiares do pescador profissional que não satisfaçam
os requisitos e as condições estabelecidos na MPV, como ocorria anteriormente.
E, por derradeiro, o
pescador profissional artesanal também não fará jus a mais de um benefício de
seguro-desemprego no mesmo ano decorrente de defesos relativos a espécies
distintas.
A famigerada MPV, ainda,
estabelece o aumento da carência do tempo de carteira assinada do trabalhador
que tem direito a receber o abono salarial. Antes, quem trabalhava somente um
mês e recebia até dois salários mínimos tinha acesso ao benefício. Agora, a
carência será de, no mínimo, seis meses ininterruptos.
Afora isso, também
modificando a sistemática anterior (o benefício era pago na íntegra,
independentemente do tempo trabalhado), o pagamento do benefício será
proporcional ao tempo trabalhado, do mesmo modo que ocorre atualmente com o 13º
salário.
Justificativa
A título de justificativa,
o ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, afirmou que “as medidas são
necessárias para o equilíbrio fiscal do país nos próximos anos e corrigirão
distorções na concessão de benefícios trabalhistas e previdenciários,
detectados em auditorias feitas pelo governo”[ii].
De fato, a exposição de
motivos[iii]
da MPV 665 advoga no mesmo caminho:
Em
2013, as despesas com abono salarial e seguro desemprego somaram R$ 31,9
bilhões e R$ 14,7 bilhões, respectivamente. Por sua vez, a intermediação de mão
de obra registrou um investimento de apenas R$ 117,2 milhões nesse mesmo
período. Diante dessa distorção, fica claro que tão importante quanto a criação
de um programa é o seu redesenho, afinal de contas, a sua própria efetividade é
determinante para que o público-alvo seja revisto ao longo do tempo. Nesse
contexto, torna-se necessário reduzir as despesas do FAT com políticas passivas
para investir no fortalecimento das políticas ativas, pois estas têm impacto
direto no aumento da produtividade do trabalhador e da economia, o que gera
maiores ganhos de bem-estar para toda a população no longo prazo.
E no que pertine com o
seguro-defeso:
Por
fim, esta medida provisória também faz alterações no seguro-desemprego
destinado aos pescadores artesanais em período de defeso. O objetivo é tornar
mais claro o enquadramento para fins de concessão do benefício pecuniário,
diferenciando aqueles que vivem exclusivamente da pesca daqueles que exercem outras
atividades profissionais.
Sucede, todavia, que,
abstraída a celeuma em torno do (des)atendimento,
pela MPV, dos pressupostos de relevância e urgência – mérito que daria origem a
estudo ainda mais amplo, do que não se ocupará aqui (o que, todavia, não
desautoriza apontamento acerca da absoluta debilidade da exposição de motivos
da MPV quanto ao tema[iv] –,
todo ato normativo precisa guardar compatibilidade pelo menos material com a
constituição da República; é assim com as leis em sentido estrito, o deve ser
com as MPV, no Brasil, manejadas como simulacro das primeiras.
De efeito, no mundo
empírico da MPV 665, não há convergência material com a carta constitucional,
notadamente porque, comprimindo direitos fundamentais trabalhistas – guindados,
inclusive, ao núcleo intangível da Constituição (cláusulas pétreas) –, afronta
o princípio da proibição do retrocesso social.
Num cenário ideal, o
dirigismo constitucional inaugurado com a Carta de 1988 conduziria, na temática
da concretização dos direitos sociais, a uma promoção quase que automática
desses últimos (políticas públicas tendentes a eficacizá-los), ainda mais
considerando o teor do § 1º do art. 5º da CF/88.
O que se verificou,
todavia, passados 26 anos da promulgação da “constituição cidadã”, foi um moroso
movimento do Estado na regulamentação e na criação das políticas públicas aptas
a tornarem efetivos os direitos fundamentais (dentre os quais os sociais, por
óbvio). Importa, entretanto, que esse andar, embora lento e hesitante, seja
contínuo e progressivo. Vale dizer, mais importante do que o ímpeto e a velocidade
da criação e implementação das políticas públicas é a garantia de que não haja
recuo.
O princípio da proibição
do retrocesso social é embrião da “teoria da irreversibilidade”, articulada por
Konrad Hesse, em 1978:
A
Nichtumkehrbarkeitstheorie ou teoria da irreversibilidade, desenvolvida por
Konrad Hesse, partiria da afirmação de que não se pode induzir o conteúdo
substantivo da vinculação social do Estado diretamente da Constituição, mas uma
vez produzidas as regulações, uma vez realizada a conformação legal ou
regulamentar deste princípio, as medidas regressivas afetadoras destas
regulações seriam inconstitucionais, ou seja, haveria uma irreversibilidade das
conquistas sociais alcançadas. (NETTO, Luísa Cristina Pinto e. O princípio de
proibição de retrocesso social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p.
101-102).
Especificamente no
ordenamento constitucional brasileiro, o princípio da proibição do retrocesso
social repousa implícito na assunção do estado de direito democrático e na
própria cláusula da dignidade da pessoa (art. 1º, caput e inc. III, da CF/88). Ainda, no entender deste advogado,
também o comando da maximização da eficácia das normas definidoras de direitos
e garantias fundamentais (§ 1º do art. 5º da CF/88) alberga, materialmente, o
predito princípio proibitivo do recuo social.
Então, em matéria de
concretização de direitos fundamentais, se há um mandamento constitucional ao
progresso e máxima eficacização (§ 1º do art. 5º da CF/88), há, por
consequência lógica, a proibição do retrocesso, assim entendida, na hipótese
vertente, a criação de óbices à fruição de determinados direitos sociais, por
meio de novel regulamento sobremodo restritivo.
O Supremo Tribunal
Federal, em diversas oportunidades, aferiu a aplicabilidade do princípio da
proibição do retrocesso, sendo relevante trazer à colação o excerto seguinte,
extraído do voto da ministra Cármen Lúcia no julgamento da ADI 4543-MC/DF[v]:
Esse
princípio da proibição de retrocesso político há de ser aplicado tal como se dá
quanto aos direitos sociais, vale dizer, nas palavras de Canotilho “uma vez
obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente,
uma garantia institucional e um direito subjetivo. ...o princípio em análise
limite a reversibilidade dos direitos adquiridos em clara violação do princípio
da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico,
social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao
respeito pela dignidade da pessoa humana” (CANOTILHO, J.J. Gomes – Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 3ª. Ed., p. 326).
De igual modo, no julgamento
do ARE 639337 AgR/SP[vi],
o ministro-relator Celso de Mello fez constar:
O
princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais
de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo
cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o
retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o
direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.)
traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou
coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas,
uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo
Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido
os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas,
também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a
preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial -
os direitos sociais já concretizados.
Conseguintemente, as
alterações introduzidas pela MPV 665 vulneram os níveis de concretizações
anteriores dos direitos ao seguro-desemprego, seguro-defeso e abono salarial.
Com efeito, ao impor
embaraços à fruição desses direitos, não está a MPV em comento simplesmente
alterando a regulamentação dos acessos às benesses; está, isto, sim, reduzindo
e restringindo a via condutora às precitadas políticas de amparo social
(estreitando a porta). Por consequência, resulta comprimido o núcleo do direito
social que os ampara (art. 7º, inc. II, da CF/88).
Poder-se-ia, no ponto, contra
argumentar que afronta ao princípio da proibição do retrocesso social haveria
se a MPV 665 suprimisse o direito. Um argumento que tal não se sustenta, ao
menos, por duas razões.
A uma, porque medida
provisória sequer poderia versar sobre o assunto (supressão), visto que até ao
poder constituinte reformador há óbice nesse sentido (emenda à constituição –
proibição do art. 60, § 4º, inc. IV, da CF/88).
A duas, porque o princípio
da proibição do retrocesso social não ampara apenas a manutenção do direito,
mas requer também a abstenção de compressão do seu núcleo essencial.
Convenha-se, em conclusão,
que regulamentação que triplique o período de carência do primeiro pedido de
seguro-desemprego ou que substitua a integralidade do abono salarial pela
proporcionalidade ao tempo trabalhado, sem decente justificativa jurídica
(“equilíbrio fiscal do país” não pode custar a perda de direitos) e ausente
diálogo institucional com o Congresso Nacional – o que se suporia, na hipótese
de um projeto de lei –, efetivamente comprime o núcleo essencial dos direitos.
Nesse andar, impõe-se como
medida de justiça e rigor jurídico a conclusão de que a MPV 665, por ofender o
princípio da proibição do retrocesso social, é inconstitucional, visto que
ultraja, por via de consequência e em última análise, a Constituição da
República.
Até, portanto, o final da vacatio legis definida na própria MPV
665 (entra em vigor no dia 28.02.2015, no que tange às alterações feitas nos
requisitos e duração do seguro-desemprego (arts. 3º e 4º da Lei nº 7.998/90), e
no dia 01.04.2015, quanto às alterações no seguro-defeso), seria salutar que o
Poder Executivo, pelos ministros que firmaram a ignóbil exposição de motivos, a
reconsiderasse.
Uma tal capitulação, longe
de definir fraqueza, teria o efeito de sinalizar que o Poder Executivo se apercebeu
do signo que persegue a MPV 665 desde a adoção, a saber, a completa ausência,
por seus mentores e redatores, de conhecimento
jurídico-constitucional, corrigindo-o.
E corrigir-se significa crescer,
evoluir. Aliás, na hipótese, significaria dar vida a um outro princípio,
orientador da atividade administrativa, o da eficiência.
O
Direito Revisto – Jan/15
Artigo
enviado pelo autor
[1] Leandro Caletti é advogado,
especialista em direito do trabalho.
[1] Disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/12/31/medida-provisoria-endurece-regras-do-seguro-desemprego. Acesso em 27.01.2015.
[1] Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Mpv/mpv665.htm. Acesso em 27.01.2015.
[1] “9. A urgência da medida
caracteriza-se pela evidente necessidade de adequar o FAT para que esse tenha
assegurada a sua sustentabilidade financeira intertemporal. 10. Essas são,
Senhora Presidenta, as razões que justificam a elaboração da minuta de Medida
Provisória que ora submetemos à elevada apreciação de Vossa Excelência.”
[1] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/listarDiarioJustica.asp?tipoPesquisaDJ=AP&numero=4543&classe=ADI. Acesso em 27.01.2015.
[1] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/listarDiarioJustica.asp?tipoPesquisaDJ=AP&numero=639337&classe=ARE.
Acesso em 27.01.2015.
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